Eu gosto do meu cabelo por Diony Maria Oliveira Soares |
Comportamento | |||
Qua, 06 de Agosto de 2008 04:53 | |||
Cabe somente a nós mesmos, mulheres negros e homens negros,
buscarmos a fórmula adequada para a nossa própria representação.
Dia desses uma pequenina nota com apenas 108 palavras,
divulgada na versão digital de um veículo da grande imprensa brasileira
aparentemente com a pretensão de abordar o complexo tema "o poder do cabelo",
mereceu muitos comentários de internautas. Mulheres e homens ora posicionaram-se
a favor dos termos utilizados para a redação, ora teceram críticas por
considerá-los discriminatórios. Ainda que isto possa soar antipático, não vou fornecer maiores detalhes nem da nota nem dos comentários. Assumo tal decisão por entender que, sendo um veículo de comunicação a serviço dos afro-descendentes, convém sintonizar com a reflexão de Stuart Hall (2000) para a relação da identidade cultural com as questões: "'quem nós podemos nos tornar', ‘como nós temos sido representados' e ‘como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios'". Hall argumenta que a fala ocorre sempre a partir de uma posição histórica e cultural específica, sendo fundamental levar em conta quem fala e qual é a representação que advém desta fala. Ou seja, cabe somente a nós mesmos, mulheres negras e homens negros, buscarmos a fórmula adequada para a nossa própria representação. A grande mídia brasileira definitivamente não fará isso. Regra geral, explicita Muniz Sodré (1999), o discurso midiático catalisa expressões políticas e institucionais sobre as relações inter-raciais a partir de "uma tradição intelectual elitista que, de uma maneira ou de outra, legitima a desigualdade social pela cor da pele"; modela as atitudes discriminatórias e desempenha "papel central tanto na produção quanto na reprodução do preconceito e do racismo". Pois bem, voltemos ao tema abordado pela tal notinha do tal veículo da grande mídia. Segundo Nelma Lopes Cardoso (2007), "mais de 70% dos brasileiros têm cabelos crespos, que vão do encaracolado ao mais crespo". Um dado bastante significativo, uma vez que vários estudos consideram que o cabelo é um dos pontos mais vulneráveis no corpo negro. Tal consideração me fez lembrar de três episódios que vivenciei tendo o meu cabelo crespo como protagonista. O primeiro ocorreu na minha infância quando, ao chegar à escola com os cabelos recém-alisados a frio com aquelas famigeradas pastas, fiz uma simples alusão a tal prática e isso gerou o desconforto e a mudez das colegas. Naquela época, idos 70 do século XX, talvez o assunto fosse tabu e não pudesse ser comentado entre meninas. O segundo diz respeito a minha vida profissional e aconteceu no início dos anos 90, quando o editor-chefe de um jornal localizado em município da Serra Gaúcha, no qual eu trabalhava como subeditora, achou que tinha o direito de criticar o meu cabelo em plena reunião de pauta. Eu estava chegando à redação do jornal recém-saída de um salão de beleza (corte, hidratação e penteado). O cabeleireiro havia me incentivado a "assumir os crespos". Incomodado, o editor me recomendou: "você deveria prender esse cabelo". Já o terceiro ocorreu em 2006, na casa de uma mulher negra idosa e pobre que, quando me viu com os cabelos crespos naturais amarrados para cima por um lenço colorido, reclamou mal-humorada: "não adianta você se arrumar, com este cabelo sempre vai parecer uma mendiga". Nessas três ocasiões, lembro nitidamente, eu estava me sentindo bem bonita. Tais lembranças incitaram-me a resgatar abordagem de Nelson Inocêncio (1999) sobre as relações raciais e implicações estéticas, na qual este professor explicita que a palavra estética "deriva de ‘sentir', mais especificamente das formas de sentir", e destaca que, no Ocidente, o dispositivo estético proporcionou uma "relação maquiavélica entre a cultura hegemônica e culturas emergentes", tendo em vista o componente racial. Segundo Inocêncio, "existe no Brasil um padrão estético que nega o perfil multirracial do país", sendo que "a divulgação desse padrão condiciona a sociedade a pensar, a se comportar e a almejar vitórias no campo simbólico e até material que esbarram nesse limite". Assim, ao lembrar que historicamente esta construção discursiva está relacionada com as ambições do processo de colonização desencadeado pelos europeus, o professor sustenta que "o olhar europeu em relação aos africanos e aos ameríndios não foi um olhar casual, mas causal", o que resultou em dicotomias, nas quais "noções de bem e mal, bonito e feio, nobre e vulgar são definidoras do status cultural". Ou seja, a manutenção de uma condição privilegiada de poder depende de dispositivos que impedem (tentam impedir) aqueles que podem contestar tal privilégio de perceberem o seu próprio potencial de contestação e, consequentemente, de poder resistente. A lista de dispositivos neste sentido é grande. Em relação ao tema deste artigo, entre outras coisas, para manter a dominação "os mesmos" precisam insistir na pregação de crendices para baixar a nossa auto-estima: juram que somos feias (os). O jogo é assim e não há como escapar dele. Urge aprender a jogar com maestria. Mais uma lembrança surge à tona. Um trecho de uma canção escrita por Cristiane Sobral para a peça teatral Uma boneca no lixo, a cuja estréia tive a felicidade de assistir em 1998, em Brasília: "quero viver em paz com meu cabelo / eu tenho muito zelo com meu cabelo / qual será o preconceito / porque você quer me ver sempre do seu jeito / de entender, de saber [...] eu gosto do meu cabelo / eu gosto desse meu zelo / do zelo por mim". Eu também, Cristiane. Eu gosto desse zelo por mim. Eu gosto do meu cabelo. Dione é Jornalista, especialista em Antropologia Social e mestra em Educação/UFPel Referências: BRESSER, D. O poder do cabelo. O Estado de S. Paulo digital. Blog da revista. Seção: Beleza. (www.estadao.com.br) 18.03.2008. CARDOSO, N. Cosmética étnica. Brasília: Ìrohìn. ano XII, n.19, março/ 2007. p.23. HALL, S. Quem precisa de diferença? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença; a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p.109. INOCÊNCIO, N. Relações raciais e implicações estéticas. In: LIMA, Ricardo Barbosa (org.). 50 anos depois; relações raciais e grupos socialmente segregados. Goiânia: Movimento Nacional dos Direitos Humanos, 1999. p.21-35. SOBRAL, C. Uma boneca no lixo. Texto para representação teatral. original fornecido pela autora. 1998. SODRÉ, M. Claros e escuros; Vozes,1999. p.243-244. identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes,1999. p.243-244. Artigo publicado originalmente em www.irohin.org.br
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