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Delírio de confinado . Por Marilene Felinto
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Comportamento
Dom, 26 de Julho de 2020 01:15

Marilene_FelintoDa estranheza do confinamento: nunca se sentiu tanto o próprio hálito como dentro da máscara. Essa nova autopercepção é ultraindividualidade, o superíntimo odor de si mesmo (“one’s own intimate smell” —em inglês, que tem este “one” pronominal ótimo para definir o “qualquer um”, o “todos”). Gostou do cheiro do seu próprio hálito?
A pergunta fica suspensa no ar, incompreensível como língua estrangeira. Nesta espécie de anticorpo da pessoa —o corpo que contamina e é contaminado—, corpo mascarado, um tanto de imaterialidade: o que era corpo, rosto, resta agora como barreira impalpável que o separa dos outros corpos, um vão, um abismo (corpo sem abraço).

Nunca se sentiu tanto o intrínseco, o de dentro e o de fora de si mesmo: o hálito e o outro álcool, outro tato seco, ressecado pela química do sabão e do gel, a própria pele em risco de vida, a gotícula que infecta, a inspiração, a expiração, o automovimento respiratório —antes tão automático.

No horror do confinamento: mas são os pobres que seguem morrendo mais, expostos ao patógeno, explorados —confinamento como questão de classe social, revoltante distanciamento seletivo... pobres são de alto risco infeccioso... Revolta.

“Sim, o que eu queria mesmo era ver uma amiga minha que é mais jovem do que eu e cheia de energia criativa para esta vida cruel... Uma inspiração, uma identificação, uma lembrança de mim mesma na juventude. Queria rir com ela, reviver, ouvir a voz... ver a cara, os gestos, de perto, fora das telas...”


Mas, do grupo de risco dos mais velhos, além disso, o confinamento exige ética social, métrica no distanciamento, na separação, no isolamento do corpo sob a máscara antiviral.

No cansaço do confinamento: o compasso de espera, o teste de paciência e confiança no que há de conhecimento científico sobre o corpo humano, a saúde e a doença. O tempo adiado: a espera pelo devir, pela mudança, pela saída das trevas, pela vacina. Mas isso, a impotência da espera, tem algo de um tempo passado, da prática de curandeiros que manipulavam em segredo a cura misteriosa das doenças.

Na solidão do confinamento: nas salas, nos quartos das casas, dos apartamentos, a tecnologia alterando o processo social de trabalho para os não pobres: a casa-escritório, estranha casa-ofício, o office, home office, os dispositivos móveis, portáteis, e os seres interrompidos, quase imóveis, parados nos vários sistemas operacionais, nas arquiteturas diversas da solidão dos bem de vida.

Da ilusão no confinamento: [o sexo virtual disseminou-se, tem se consumado via “webcams”, as câmeras, ao vivo nas salas-confessionários virtuais, sexo microprocessado, interação entre discos rígidos, na assepsia, na nanotecnologia, sem contato, sem contágio: sexo sem fidelidade, sem reprovação moral, sem a violência das paixões, entre ele, entre ela, entre um cis qualquer gênero, “one”, um não, um cis, um sim, uma não, sexo filtrado em “garotas, garotos, transexs e transboys”; tão ultramoderno e ao mesmo tempo tão ultrapassado, sexo que faz ainda o culto do falo nas salas-confessionários, culto ao tamanho do falo, ao vivo e ao longe].

“Então, sim, mas eu gostaria de visitar um amigo meu bem mais velho... Dizer a ele que somos obsoletos, da época em que se fazia sexo presencial. Que quase não existimos mais. Que somos dos tempos do absorvente menstrual higiênico. Que hoje se utiliza tecnologia mais econômica, um coletor menstrual, de silicone medicinal, que dura mais de ano!”

Ele não entenderia, que tem mais de 80 anos, mas ainda gargalha. “Por que veio com esta de absorvente?” Não sei, me contaram outro dia, e me senti extraterrestre. Não conheço, não menstruo mais. Sou dos tempos do tampão O.B., esse invento do século passado, que a indústria alemã manteve em nome abreviado por pudor do extenso “Ohne Binden” (sem absorventes, sem pensos, sem amarras).

Com pudor, com vergonha de dizer o sexo, o objetozinho que se enfiava vagina adentro, preso por um fio de cordão. Hoje já é antigamente.

No delírio do confinamento: a vacina tem nome impronunciável, “ChAdOx1 nCoV-19”. A vacina é produzida a partir de um vírus geneticamente modificado, que causa o resfriado comum em chimpanzés —tão ultramoderna e ao mesmo tempo tão ultrapassada quanto a pré-história dos pré-humanos.

No delírio do confinamento: não sabemos falar os nomes. “Na solidão de indivíduo”, como dizia o poeta, “desaprendi a linguagem com que os homens se comunicam”. Você fala a língua? Gosta do odor de seu hálito? Você goza de disco rígido para disco rígido? Você ainda tem medo do fogo dos infernos? Você, vacinado, acha que criará o futuro?

Marilene Felinto Escritora e tradutora, autora de “As Mulheres de Tijucopapo”. Mantém o site marilenefelinto.com.br

Artigo publicado originalmente em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilene-felinto/2020/07/delirio-de-confinado.shtml

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