Salvador, 23 de April de 2024
Acesse aqui:                
Banner
facebookorkuttwitteremail
Questão do Negro Não é Só de Negro por Fernando Conceição
Ajustar fonte Aumentar Smaller Font
Cidadania
Dom, 08 de Outubro de 2006 09:50
Uma lembrança do geógrafo Milton Santos, intelectual de renome internacional mas pouco sabido na Conceição da Praia
Fim de tarde desses, depois de antes tomar umas cinco, me vi com um amigo numa casa de respeito mas liberalidade das últimas existentes nas imediações da Conceição da Praia e Montanha, dançando com uma jovem manceba que acabara de conhecer. Perguntei no seu ouvido se alguma vez na vida ela já ouvira falar do  professor Milton Santos. Realmente eu deveria estar pra lá de Bagdá com um papo desses porque, ato contínuo, a garota me deu um coice - e tive de terminar a noite, literalmente, a ver navios na Baía de Todos os Santos mas pouco de  Milton.

Geógrafo, formado em Direito pela Universidade Federal da Bahia, editorialista de A Tarde nos anos 1950-60 (a convite de Ernesto Simões Filho), ao morrer em São Paulo em junho de 2001 era internacionalmente  conhecido. Tornara-se um dos mais influentes críticos dos rumos que a atual fase do sistema capitalista -
conhecida como globalização (ele preferia nomear globalitarismo) - tem impingido à humanidade, uma globalização que chamava de "perversidade", diante  dos milhões de excluídos e da miséria estrutural que engendra.

Quando morreu Milton Santos já era um intelectual de renome, merecedor do "Nobel" da Geografia (prêmio Vautrin Lud, 1994). Fora nos últimos dez anos de  sua vida laureado e paparicado por toda parte, principalmente na Europa - depois de que a "inteliggentzia" brasileira também teve de tirar o chapéu, sem
ou a contragosto. Recebera então do Brasil, após quase vinte anos de exílio  impostos pela ditadura militar de 1964 e outros tantos de ostracismo, generosas homenagens, algumas dessas em dinheiro - que é o que vale! Fora, inclusive, "reintegrado" ao quadro de professores da UFBA., ele que teve os seus direitos 
políticos suprimidos pelos golpistas que o puseram nas masmorras dos quartéis do Exército em Salvador, de março a dezembro daquele ano. Da prisão, onde sofreu um derrame que lhe paralisou parte de um dos lados do rosto, somente saiu - direto para um avião que o levaria à França - por injunções de amigos e pelo clamor de intelectuais franceses. Começou ali sua carreira internacional por quatro continentes.

Se a garota que dançava comigo, uma bela negra, não tem qualquer referência sobre Milton Santos, também um negro, a responsabilidade não é, necessariamente, dela. Nesta província quem dá nome a aeroportos, praças, monumentos e memoriais são filhotes de coronéis, os Magalhães da vida, sócios daquela mesma ditadura ou seus apaniguados, quase sempre personagens cuja importância se mede pelo grau de subserviência ao poder e por sua nulidade intelectual.

Milton Santos é um quase-estranho em sua terra natal, a Bahia, onde nasceu na região da Chapada Diamantina em 1926, filho de professor e professora de escola pública. Morreu de câncer na próstata e foi enterrado na capital paulista, que o adotou e que não mais largou desde o início dos anos 80, após seu  regresso  proporcionado pela abertura política do regime. Casado de novo e com outro filho (agora beirando os 30), tornou-se professor da Universidade de São Paulo, a mais importante da América Latina, que até hoje lhe rende homenagens e onde  tem discípulos fervorosos. Publicou mais de 40 livros, alguns clássicos  da geografia. Seu primeiro filho, economista, professor da UFBA., também batizado Milton Santos, morreu antes do pai no cargo de Secretário da Fazenda de  Salvador, no tempo da administração Lídice da Mata, e isso o abalou profundamente. Tinha ojeriza por Domingos Leonelli, o eminência parda daquela gestão.

Por falar em negro, e uma vez que este artigo foi escrito sob encomenda para o Dia Nacional da Consciência etc., Milton Santos ficaria fulo da vida se soubesse que está sendo lembrado em função disso. Me contou certa vez que a produção do programa "Roda Viva" da TV Cultura o convidara para fazer parte da
bancada de entrevistadores de um alto diplomata dos Estados Unidos. Ele quis saber do interlocutor quem mais tinha sido convidado. Informado de que todos se identificavam como negros, se recusou a ir. Disse que somente iria se também  colocassem "brancos" na bancada.

Por que negros têm de debater entre si, quando a questão é não apenas deles mas de toda a sociedade? Por que somente lembram de convidar negros para opinar sobre esse mesmo assunto e somente em datas relativas ao tema? Isso não seria,  outra vez mais, um reforço ao estereótipo? Pretendendo ser politicamente corretos e bem-intencionados, os setores que controlam a circulação de idéias não estariam agindo paternalisticamente, criando novos "guetos" (intelectuais  ou políticos), isto é, outros espaços identificados como "lugares" de negros?

Espaço, tempo e lugar são conceitos caros à geografia humana desenvolvida e problematizada à exaustão por Milton Santos, o filósofo. Para ele, o ser é  indissociável dessas duas realidades, que compõem o seu contexto e, no extremo, a experiência da vida. Por essa concepção podemos digredir que a existência de
Zumbi dos Palmares, como qualquer outra - a de Milton Santos, a sua, a minha ou  a da garota da zona de meretrício - pode ser deduzida pelo contexto geográfico/histórico que lhe dá conteúdo e forma. Isso cheira a marxismo. Assim entenderam aqueles que o colocaram na prisão nos anos 60.

Tinha profunda crença, beirando às vezes a mais infantil utopia, na força "dos de baixo", isto é, da multidão formada pelos pobres: em razão da "experiência da escassez" , a esses caberia levantar-se contra a exclusão gerada pelo  processo da globalização ("fábula e perversidade") tal como se dá atualmente.
Processo globalitarista para o qual contribuem o uso que o capital faz do desenvolvimento técnico, a avassaladora ditadura da informação (não confundir  com comunicação) e a tirania do dinheiro - todos fatores que afrouxam princípios fundamentais de ética, respeito e solidariedade humanas.

Compartilhe:

Última atualização em Qua, 25 de Outubro de 2006 17:02
 

Adicionar comentário


Código de segurança
Atualizar

FOTOS DOS ÚLTIMOS EVENTOS

  • mariofoto1_MSF20240207-146Lavagem Funceb. 08.02.24. Alb 2. Foto: Mário Sérgio
  • mariofoto1_MSF20240207-007Lavagem Funceb. 08.02.24. Alb 1. Foto: Mário Sérgio
  • mariofoto1_MSF20240203-082Fuzuê Alb 1. 03.02.2024. Fotos: Mário Sérgio
  • mariofoto1_MSF20240203-147Fuzuê Alb 2. 03.02.2024. Fotos: Mário Sérgio
  • mariofoto1_MSF20240203-273Fuzuê Alb 3. 03.02.2024. Fotos: Mário Sérgio
  • mariofoto1_MSF20240203-334Fuzuê Alb 4. 03.02.2024. Fotos: Mário Sérgio
  • mariofoto1_MSF20240112-0934Beleza Negra do ilê. Alb 1. 13.01.24 By Mario Sérgio
  • mariofoto1_MSF20240112-1150Beleza Negra do ilê. Alb 2. 13.01.24. By Mário Sérgio
  • mariofoto1_MSF20240112-1426Beleza Negra do Ilê. Alb 3. 13.01.24 By Mário Sérgio
  • mariofoto1_MSF20240112-1585Beleza Negra do Ilê. Alb 4. 13.01.24 By Mário Sérgio

Parabéns Aniversariantes do Dia

loader
publicidade

ENSAIOS FOTOGRÁFICOS

GALERIAS DE ARTE

HUMOR

Mais charges...

ENQUETE 1

Qual é o melhor dia para sair a noite?