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A síndrome de Canudos e o udenismo sem-vergonha por Flávio Aguiar
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Meio Ambiente & Sustentabilidade
Sáb, 28 de Junho de 2008 05:24
Muitas vezes, a esquerda da esquerda, ao falar do governo Lula, parece repetir a síndrome de Canudos. Esse governo tem suas contradições, lacunas, erros? Tem, nunca deixamos de apontá-los. Deveria ser abatido? Sua continuidade (seja lá com quem for) deve ser impedida? Só uma néscia irresponsabilidade histórica pode pensar assim. A análise é de Flávio Aguiar. Chamou-me a atenção um comentário do Emir em resposta aos muitos que recebeu quando da publicação em seu blogue do relato sobre a reunião do presidente Lula com os intelectuais em Araraquara, quando da homenagem à professora Gilda de Mello e Sousa. Dizia o Emir que um dos presentes, recém chegado do exterior, disse que "lá" a imagem do Brasil é muito boa; e que "aqui" é muito ruim. Ao que ele (Emir) comentou com Luis Fernando Veríssimo que "lá" "eles" não lêem a imprensa "daqui". Veio o pensamento a mim, que vivo "lá": é também que "aqui", este "lá", não ressoa muito o pensamento de uma certa esquerda "daí", do Brasil, que o desanca sem saber muito em que mundo está, situada "acolá" de qualquer reflexão sobre o que se passa, muitas vezes, além da soleira do próprio nariz.

Como o nariz dos que acusam a Carta Maior de aulicismo. Ou é porque não lêem a Carta Maior, não a acompanham, ou é porque só lêem nela o que querem, tomados que estão de uma "síndrome de Canudos", a nossa admirável, mas malograda cidadela popular.

Uma observação prévia se impõe. Depois de massacrada pelo Exército e polícias estaduais, a cidadela do Belo Monte foi massacrada de novo, por muitas décadas, pela própria esquerda, rotulada que foi de "messiânica", "beata", "alienada", etc., aceitando-se o pré-conceito histórico dos positivistas. Recordo-me que na beleza da juventude, que os anos não trazem mais, ouvi elogios ao personagem Antonio das Mortes (de resto, um grande personagem) do filme "Deus e o Diabo na terra do sol", de Glauber Rocha (de resto, um grande filme). Esses elogios falavam dele como "necessidade histórica", porque destruía o cangaço e a comunidade de Monte Santo, em torno do beato Sebastião, para que reluzisse a "verdadeira consciência" do povo, isto é, aquela que nós, estudantes inflamados daqueles verdes anos, trazíamos para a praça pública.

Tínhamos nossas razões, mas nesse particular, havia alguma incômoda homologia com os positivistas jacobinos que, em nome da República, saudavam o fim da "nossa Vendéia", o reduto camponês manobrado pela aristocracia francesa contra a revolução de 89.

Mas... voltemos ao principal que é o fio da meada que nos leva da síndrome de Canudos ao udenismo sem-vergonha. Para tanto, tomemos a via direta de uma digressão, que nem sempre o caminho mais curto entre dois pontos é uma linha reta, como já demonstraram Einstein e o imortal Didi, cada um em seu campo específico.

Onze anos atrás, em colóquio na cidade alemã de Colônia, a propósito da celebração dos 100 anos do massacre que se abateu sobre o sertão, apareceu um notável oficial do Exército Brasileiro, do setor de documentação. Davi era o seu nome. Sua participação foi brilhante. Provou, por A + B, que nada de sedição houvera na formação da cidadela do Belo Monte. Qual era o abecedário? A estratégia militar, em duas facetas. A primeira, expôs ele, era a de que se houvesse um princípio sedicioso na formação da cidadela, aquele sítio do Belo Monte jamais poderia ter sido de escolha.

Por quê? Porque era ligado ao resto da região por inúmeros caminhos. Se assim aconteceu, é porque além de ser bom para congregar gente, o sítio o era para manter indispensáveis contatos com a região em volta, que incluíam o comércio, o abastecimento, a circulação de informação, enfim, tudo o que uma urbs "moderna" exige. Canudos era um caminho de "modernização", vejam só, não de sublevação. Aqueles caminhos abertos, aliás, serviram aos seus atacantes, os fracassados e os de sucesso. A segunda é que, deflagrada a hostilidade, esses mesmos caminhos não foram usados para qualquer retirada, a não ser quase no final, dias antes do cerco se fechar, por um pequeno grupo liderado pelos comerciantes locais. O reduto de Canudos deixou-se isolar, e por isso foi abatido. Convenhamos, é o que muitas vezes vejo a esquerda da esquerda exigir do governo Lula. Esse governo tem suas contradições, lacunas, erros? Tem, nunca deixamos de apontá-los. Deveria ser abatido? Sua continuidade (seja lá com quem for) deve ser impedida? Só uma néscia irresponsabilidade histórica pode pensar assim.

A nossa intuição diz que uma coisa é uma coisa, e que outra coisa outra é. Mas se pensarmos bem, uma coisa pode ser uma e a outra também. Criticar, por exemplo, a timorata atitude do governo Lula diante da Casa Grande (ia dizer Branca) em que o Banco Central se transformou, conceitualmente, é uma coisa. Faze-lo indiscriminadamente, sem atentar para que lado vai a crítica, qual é a proposta alternativa, é abrir caminho para tucanos e demos, pois cria aquela atmosfera do "é tudo a mesma coisa".

Olhemos ao redor, para o vasto e pequeno mundo que nos cerca. Nas várias Europas, as poucas esquerdas estão na UTI da história. Os partidos social-democratas e os socialistas se renderam, duas décadas atrás, às balizas conservadoras do Consenso de Washington, a ponto de perderem a própria identidade (como aponta artigo recente de José Luis Fiori) e se tornarem apêndices das políticas conservadoras, quando não pontas-de-lança. Mas não foram apenas "eles" que se renderam. Houve como que um torpor generalizado, de corações e mentes, que engolfou-os e engolfou-as nessa verdadeira "Bolha Assassina"(nome de um filme famoso, com Steve McQueen, para quem não sabe ou lembra) em que se transformou a necessidade das "reformas" depois do desabamento do mundo socialista.

Este, é bom lembrar, não foi derrotado de fora para dentro; não houve ocupação militar, como na Comuna de Paris. Ele foi derrotado de dentro para fora, derrotou-se a si mesmo. Aí há algo em que pensar, para além dos aviões de carreira que nos transportam ao cômodo, mas inútil, mundo das certezas imutáveis.

Agora, não mais que de repente, as antigas e as novas esquerdas ensaiam alguma recuperação, ainda em nível existencial. A candidatura de Royal na França, assim como o surgimento do novo partido Die Linke (A Esquerda) e a timidíssima inflexão ao centro do SPD na Alemanha são sinais desses organismos que, depois de longo estado de coma, começam a dar sinais de saírem, quem sabe, da hibernação.

No Leste europeu os políticos de prestígio pertencem à direita ou à centro-direita, assim como na Suíça e na Inglaterra. A Rússia está tomada por um governo mais interessante do que ao tempo do Yeltsin, mas de espírito czarista redivivo. A Espanha de Zapatero é mais interessante do que a de Aznar, mas assim mesmo não é um modelo de vanguarda. Da Itália de Berlusconi e de Bento XVI nem é bom falar, para não mergulharmos logo no inferno astral. A China transformou-se numa potência capitalista e neo-imperialista na África, sobretudo, onde desembarca capitais e mão de obra, numa ocupação que lembra os tempos coloniais na América Latina. Na África aos tempos heróicos das lutas anti-coloniais se sucedeu um (des)integrar-se na nova ordem mundial capitalista. A África do Sul resiste um tanto, mas ainda assim seu esforço mais é por integrar-se de modo mais coerente que seus vizinhos a essa nova ordem. A Índia moveu-se, é verdade: de um governo de direita passou para um de centro-direita, o que, sem dúvida, é melhor, mas não nos desperta o animus revolucionandi, ao contrário, o reflexionandi. O Japão lembra o dito sobre Minas: está onde sempre esteve. Para a Palestina nem é bom olhar, com a confusão ideológica em todos os campos, e no mundo árabe e próximo ao redor campeiam fantoches norte-americanos, líderes que são mais problemas do que soluções, como no Irã, e ex-criações da CIA, como os talebãs e Osama Bin Laden, ou o que dele restar.

E os Estados Unidos? Debatem-se entre a neo-direita de McCain e a neo-ainda-não-sabemos-o-quê de Obama. Tudo bem: simbolicamente, Obama é um acontecimento saudável. Mas o que de mais substancioso trouxe até agora foi a promessa de criar um sistema de saúde de espírito público nos Estados Unidos, algo assim como o SUS que já existe no Brasil (e é muito avançado, diga-se de passagem) em lugar da situação caótica e privatista que hoje campeia do Rio Bravo aos Grandes Lagos, do Rio Hudson à Golden Gate. Enquanto isso, numa tirada demagógico-populista Bush promete encher a costa norte-americana do Atlântico com plataformas submarinas para baratear já (!) o preço do petróleo e o candidato republicano diz que vai inundar o oeste do país com 32 novas usinas nucleares! (A propósito: não ouvi nenhuma Ongue européia ou outra a demandar a internacionalização do oeste norte-americano para discutir a instalação dessas usinas).

Baixemos o olhar para a nossa América Latina. O México, da gloriosa revolução de 1910, hoje é ponta de lança da direita, com o caso ainda mais grave da Colômbia logo ao sul. Cuba se debate para não naufragar, e está à beira de uma "segunda fase revolucionária" (ou será já a prorrogação?) que ninguém sabe onde vai dar. No Haiti, o novo governo já teria sido varrido do mapa pelas milícias(?) com que o governo de Aristide, cheio de boas intenções, mas desorganizado, conviveu, não fosse a presença das tropas (infelizmente, mas a vida tem infelicidades piores e menos piores) brasileiras. As revoluções republicanas (ainda longe de socialistas) da Venezuela, da Bolívia, do Equador e do Paraguai dependem da estabilidade brasileira, enquanto nestes países as direitas torcem para a queda do governo de centro-esquerda brasileiro em 2010 e sua substituição pelos almejados tucanos e demos. O Partido Socialista de Bachelet se parece mais com seus congêneres europeus, embora não tenha chegado ao desossamento por que muitos destes passaram.

Caramba, e nós queremos que o governo Lula reinvente - só isso, e só - a esquerda o socialismo, e quem sabe um novo socialismo de exportação... No fundo se deseja que o governo Lula se isole, e isso num país que tem uma classe média imensa cuja cabeça política por vezes parece ventoinha de aeroporto. Inclusive a de esquerda.

Dito isto, cabe refletir sobre os limites da experiência que este (nosso, meu pelo menos) governo traz. No limite, dizia um amigo meu de larga e longa experiência, desde os tempos da militância contra o Estado Novo, ele nos ensina que numa moldura destas como vivemos a postura socialista deveria ser a de disputar os "pequenos espaços" e refletir sobre os grandes, sobre o que deve ser pensado, rescaldado e transubstanciado das experiências socialistas passadas e das grandes revoltas - de Espártaco aos zapatistas e ao MST de hoje. Lembrava ele, como argumento a seu favor, o sucesso inspirador em escala mundial (para além das derrotas e vitórias eleitorais) da administração petista por 16 anos em Porto Alegre (e ele não é gaúcho...) e a de 50 anos em Bolonha, na Itália. Poderia eu acrescentar hoje a de Berlim, ilha à esquerda num oceano de vagas encapeladas à direita...

Mas na verdade discuti que essa idéia é improvável, pois que as forças sociais se aglutinam para disputar o poder, e todas as suas fatias, não apenas algumas. Mas, contra-argumentava ele, a tradição do Estado brasileiro, sulcado pelas cordialidades históricas, é a de cooptar para dentro de si e de suas práticas, não o contrário. Mesmo um partido de esquerda não tem força, fora de um momento revolucionário, para revirar esse estado de pernas para o ar, e as "práticas difíceis" terminam por se impor em setores vitais, como acabou acontecendo em setores do "nosso" (ele também assim se expressa) governo. Mas, e eu voltava de novo a argumentar, é possível ainda disputar pequenos e grandes espaços mesmo num Estado como o brasileiro, desde que se pense grande, e não pequeno, como muitas vezes acabou acontecendo; o Brasil hoje pensa grande em muitos setores, e dei como exemplo o energético e o da política externa, ainda que abertos ambos a inúmeras discussões. E por aí seguimos na discussão. Deu-me esse amigo lição profunda, como as a que costuma dar: o governo Lula é uma pauta em discussão, não uma questão fechada, nem para um lado nem para o outro. E precisa manter diálogos com todos os setores sociais e todos os personagens internacionais, como vem fazendo, com espírito de soberania e não de integração subalterna. Questão fechada só uma: a ele não pode suceder a direita. Caso isso se realize, sentiremos saudades de nós mesmos, diante do amargor com que todos passaremos a viver.

Publicado originalmente no site www.cartamaior.com.br

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