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Uma luz sobre a crise política Brasileira por Marilena Chaui
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Meio Ambiente & Sustentabilidade
Dom, 08 de Outubro de 2006 09:53
Entrevista com Marilena Chauí: “POR TRÁS DA CRISE ESTÁ A LUTA DE CLASSES”
A MAIS FAMOSA FILÓSOFA DO PAÍS, MARILENA CHAUÍ, SEMPRE POLÊMICA, DIZ NESTA ENTREVISTA EXCLUSIVA QUE A CRISE DAS CPIS FOI INVENTADA PELA MÍDIA E É UM EPISODIO MARCANTE DA LUTA DE CLASSES NO BRASIL. E QUE O GOVERNO DO PRESIDENTE LUÍS INANCIO LULA DA SILVA ESTÁ SE SAINDO MUITO MELHOR DO QUE O SEU RETRATO PINTADO PELA GRANDE MÍDIA. QUESTIONADA SOBRE AS SUAS TRADIÇÕES, MAS OPINA QUE O PARTIDO ESTÁ EM PROCESSO DE EFERVESCÊNCIA E VAI SE RENOVAR. NA SUA VISÃO, A MARGEM PARA A POLITICA ECONOMICA É MUITO ESTREITA, POIS TEM DE OBEDECER À LÓGICA DO CAPITAL, MAS O GOVERNO LULA FALHOU AO NÃO APROVEITAR SUA GRANDE POPULARIDADE, ASSIM QUE TOMOU POSSE, PARA REALIZAR DE IMEDIATO UMA REFORMA POLÍTICA E UMA REFORMA TRIBUTÁRIA.

ENTREVISTADORES: Natalia Viana, Marilene Felinto, Bernadete Abrão, Marina Amaral, Hamilton Octavio de Souza, José Arbex Jr., Wagner Nabuco, Renato Pompeu.

FOTOS: Nino Andrés

Marina Amaral – Professora, qual é a sua análise da crise política, como ela chegou até você?
A chegada dela até mim foi muito peculiar, porque, por razoes de ordem estritamente pessoal, fiquei desligada do mundo do dia 24 de fevereiro ate quase o final do mês de maio. E quando comecei a ler e ouvir as notícias fiquei completamente atordoada, não só pelas coisas que eram narradas, mas porque não conseguia me sentir informada. Eu tinha três sentimentos: o primeiro era que a notícia não me dava o começo de alguma coisa e o final do que estava sendo noticiado. Ou seja, eu não sabia de onde aquilo estava vindo e pra onde ia. A segunda coisa é que os noticiários desmentiam a si mesmos. Não é que um jornal dava notícia de uma maneira, o outro de outra, uma rádio de outra. Não era a pluralidade na forma de apresentar, mas o mesmo veículo de comunicação dava uma informação no dia e dava a oposta no dia seguinte, então não era possível formar um quadro porque as informações não batiam umas com as outras. E a terceira é que a minha perplexidade foi diferente da perplexidade dos meus companheiros petistas e mesmo de eleitores do PT, porque a perplexidade geral era: “Como o Pt pode ser corrupto? Como o governo pode ser corrupto?” E a minha perplexidade não era essa, era: “Como o governo e o partido não percebem a forma que a luta de classes tomou e são incapazes de uma resposta verdadeiramente política ao que esta acontecendo?” Ou seja  a minha perplexidade veio do que considero a despolitização da resposta partidária e governamental à crise que estava posta, e então eu me sentia da seguinte maneira: ou repito o que todo mundo está dizendo e, portanto,não há nenhuma contribuição a dar e fico em silêncio; ou tento compreender o que está Se passando e quando me sentir em condições proponho uma análise do que está se passando.Isso não me eximiu de falar em muito lugar, formaram-se grupos de discussão, pertenço a um grupo de discussão...

Marina Amaral – Grupos de discussão do pt?
É mas não me sentia em condições de oferecer uma reflexão, mantive em silêncio. Então eu diria que a crise me pegou não desprevenida, porque desde o dia 1º de janeiro de 2003 eu espero o impeachment do Lula. Toda manhã acordo e pergunto: “Será que o impeachment vai ser hoje?” Porque talvez eu seja uma das poucas marxistas que acreditam que a classe dominante opera, e que ela não vai entregar o país e o poder à esquerda. Eu diria que se me surpreendi foi com a demora, demorou a vir a famosa crise. Então, ela não me pegou desprevenida mas apareceu de uma maneira que me impedia de me pronunciar. Bom, à medida que os acontecimentos foram se desenrolando, fui percebendo que o que se formou, não só por causa do bombardeio da mídia foi um emaranhado que tem uma finalidade: produzir a idéia de que todos são iguais em matéria de corrupção. Então, eu diria que a primeira tarefa ao pensar essa situação é distinguir o discurso da oposição, a atuação dos dirigentes petistas, do governo, a atuação da base petista, os problemas institucionais e a questão da mídia propriamente dita. Durante a entrevista pretendo explorar cada um desses aspectos, mas de uma maneira rápida eu diria que o que caracteriza o discurso da oposição é o “tudo igual” ou “a corrupção jamais vista” e o “governo Lula acabou”.

Esse é um discurso dirigido à classe media,

Marina Amaral - Grupos de discussão do PT?
É. mas não me sentia em condições de oferecer uma reflexão, e me mantive em silêncio. Então eu diria que a crise me pegou não desprevenida, porque desde o dia 1º de janeiro de 2003 eu espero o impeachment do Lula. Toda manhã acordo e pergunto: "Será que o impeachment vai ser hoje?" Porque talvez eu seja uma das poucas marxistas que acreditam que a classe dominante opera. e que ela não vai entregar o país e o poder à esquerda. Eu diria que se me surpreendi foi com a demora, demorou a vir a famosa crise. Então, ela não me pegou desprevenida, mas apareceu de uma maneira que me impedia de me pronunciar. Bom, à medida que os acontewcimentos foram se desenrolando, fui percebendo que o que se formou, não só por causa do bombardeio da mídia, foi um emaranhado que tem uma finalidade: produzir a idéia de que todos são iguais em matéria de corrupção. Então, eu diria que a primeira tarefa ao pensar essa situação é distinguir o discurso da oposição, a atuação dos dirigentes petistas, do governo, a atuação da base petista, os problemas institucionais, governamentais e a questão da mídia propriamente dita. Durante a entrevista pretendo explorar cada um desses aspectos, mas de uma maneira rápida eu diria que o que caracteriza o discurso da oposição é o "tudo igual" ou "a corrupção jamais vista" e "o governo Lula acabou”. Esse é um discurso dirigido à classe média, curiosamente proferido por aqueles sobre os quais pesam graves denúncias de corrupção, alguns sobre os quais existem provas de corrupção efetiva. Então, a finalidade desse discurso dirigido preferencialmente à classe média é neutralizar o conflito de classes. A atuação dos dirigentes petistas nos últimos anos se tomou propícia a que o partido fosse pego desprevenido numa situação de conflito político intenso. Justamente por causa da forma assumida pela direção do partido, da qual vou falar depois, a base petista está dispersa, fragmentada, desinformada, alijada das decisões partidárias, desorganizada na relação com governo, ela oscila entre uma critica radical abstrata - "o Lula traiu porque não tomou o Palácio de Inverno" - e o atrelamento. Ou seja, tanto no caso da crítica radical abstrata como no caso do atrelamento há uma mesma atitude por parte dessa base, que é esperar que todas as soluções venham do governo e não da ação política dela como um sujeito político. E é preciso entender por que a base petista ficou assim. Outro ponto é a questão dos problemas institucionais, é a legislação partidária. a legislação eleitoral, os problemas da forma da representação, das alianças, é uma situação propícia a que se passe daquilo que é característico da democracia representativa, que é a negociação - "eu exijo isso, mas concedo aquilo em troca do que exijo" -, à negociação por causa desses problemas institucionais. Esse aspecto institucional é muito importante porque é a única maneira de diferenciarmos aquilo que esta nesse emaranhado, que é a confusão entre a moral privada e a moralidade pública. Essa avaliação moral nos levaria a uma tendência moralizante e nos colocaria à distância da modernidade. Porque na concepção pré-moderna você avalia o governante a partir de uma de uma lista de virtudes e conferindo se ele tem essas virtudes que são da ordem privada. Na concepção pós-moderna, despolitizada, você avalia o governante em função das características que o marketing político propõe. Se ele é bonito ou feio, se as preferências sexuais dele são interessantes ou não, quais são as preferências culinárias, se ele é jovem, se é velho, se pratica o adultério, se bebe cerveja, se gosta de pinga - você faz a avaliação partir de um estereótipo da vida privada também. Nos dois casos, você perde aquilo que a modernidade criou, que é a avaliação da qualidade das instituições republicanas e, portanto, que a moralidade é uma moralidade pública e é ela que você tem que avaliar. Então considero que a discussão dos problemas institucionais, e que vou vincular a uma série de reformas que o governo tinha que ter feito e não fez, é um desses fios que estão emaranhando o novelo. Com relação aos problemas governamentais, penso que o problema é ter feito alianças não com partidos, mas com legendas de aluguel, e não ter controlado essas alianças. O problema da agenda do governo, vou falar disso também, ela não foi autônoma. O problema da forma da comunicação, ou seja, a opção pelo marketing. A conjuntura internacional: quais são os imperativos econômicos e políticos que esse governo tem enfrentado - e do ponto de vista da questão internacional acho que ele tem sido brilhante. E o último ponto, ao desfiar o novelo, é o que eu penso e foi reforçado nas minhas convicções: a matéria do número especial da Caros Amigos sobre corrupção, o gerenciador de crises, ou seja, “Como nascem as notícias”, alguns artigos da Carta Capital e um artigo ainda inédito do Caio Túlio Costa sobre sobre mudança dos meios de comunicação sob a ação da tecnologia digital e dos multimídias. Essas considerações me reforçaram na idéia de que houve a invenção midiática da crise, sob a regência dos partidos de oposição na tentativa de um golpe branco. Talvez por eu ter ficado longe no período em que a crise eclodiu, ficou mais fácil pra mim do que pros que estavam muito mergulhados no problema detectar o momento em que a crise é produzida pelos meios de comunicação, e a reportagem sobre o gerenciador de crises, sobre o lobista, confirmou isso. Então eu diria que é preciso prestar atenção ao momento exato de produção da crise. E aí faço três distinções. A primeira é cronológica. Podemos dizer que, cronologicamente, o momento de explosão da crise é condicionado por três movimentos sucessivos. O primeiro é a perda da presidência da Câmara. Tem um enfraquecimento do governo no Legislativo. O segundo erro foi achar que as eleições municipais eram decisivas para uma reeleição do Lula, e isso levou a gastos de campanhas dos petistas e dos aliados e ao aumento do caixa dois; e o terceiro momento é a percepção que a oposição tem da possibilidade de um favoritismo do PT nas eleições para governo de Estado e da reeleição do Lula. Isso, cronologicamente. Politicamente, o momento que faz a crise eclodir também se desdobra em três aspectos. Primeiro, temos o momento em que a Procuradoria Pública e a Polícia Federal estão expondo todos os esconderijos de fraudes antigas e novas e os atingidos dispõem de meios para acionar os seus atacantes de maneira a produzir a imagem de que tudo é igual. Eu menciono, só pra termos idéia, o que está na Caros Amigos justamente sobre essa questão, em que se tem o caso Bornhausen, o caso Meirelles, o caso Nei Suassuna e outros que foram aparecendo. Então, os atingidos atuais e futuros por essa ação dispõem, e o gerenciador de crises diz que eles dispõem, de meios para acionar os veículos de comunicação para produzir a imagem de que tudo é igual e a única maneira de dizer que tudo é igual é se o PT for corrupto também. O segundo elemento dessa ancoragem política da crise é o momento em que vai se tornando claro que vai haver um rombo de 15 bilhões de dólares no Banco Opportunity, porque ele vai perder essa quantia com o deslocamento dos fundos de pensão. Esse é um dado importante, todo dia eu abria os jornais, ouvia as rádios, via as televisões e dizia: “E o Opportunity? Que hora o Opportunity vem?” E é bom lembrar a enormidade de páginas de propaganda da Brasil Telecom em jornais e revistas, nas rádios e televisões, sobretudo naqueles veículos de comunicação em que o ataque ao governo e ao PT assumiu o tom da fúria. E o terceiro elemento político é o momento em que se julga que dar cobertura ampla às denúncias do Roberto Jefferson permite contaminar todos os governos e muitos parlamentares, e isso é possível por causa do enfraquecimento do governo no Legislativo. E também porque essas denúncias podem tornar-se favoráveis a um processo que clandestinamente vem se dando, que é o da privatização dos Correios. Então, visto sob essa perspectiva, acho que uma análise da crise nos mostra que, primeiro, a crise não é a corrupção. Não é que não há corrupção, é óbvio que há, mas se a causa da crise fosse a corrupção os seus promotores estariam preocupados com a moralização dos costumes públicos, e neste caso os arautos e as vestais da República não poderiam ser exatamente aqueles sobre os quais pesam graves denúncias de corrupção. Se fosse a corrupção, todos os  parlamentares, sem nenhuma exceção, deveriam ter aberto suas contas e suas prestações de contas eleitorais e de campanha para a sociedade. Se fosse sobre a corrupção, a discussão sobre o valerioduto deveria ter incluído no seu ponto de partida o Banco Opportunity. Considero que a crise é, por um lado, institucional, é a conseqüência necessária e repetitiva das falhas institucionais existentes no Estado brasileiro e decorre, portanto, da ausência das reformas do Estado que o governo não fez no tempo certo. Finalmente, acho que se evidencia que não é crise nenhuma, trata-se é da luta de classes ao vivo e em cores. Pra ninguém botar defeito. Infelizmente, nem o governo nem o PT, a não ser algumas vozes muito isoladas, foram capazes de perceber isso. Vi que o governo, os parlamentares, os dirigentes partidários se sentiram encurralados, completamente incapazes de responder à altura a um ataque de classes. E esse, sim, jamais foi visto no país. As respostas demoraram pra vir e quando vieram foram decepcionantes, moralistas, envergonhadas, mea-culpa...

Natalia Viana - A postura “não vão me fazer abaixar a cabeça” seria mais ou menos uma visão assim?
Mas solta no ar, porque dizer como ele disse, “são as elites e eu não vou abaixar a cabeça”, . não esclarece a sociedade sobre o que ele está falando. Não, porque uma parte da elite elegeu o Lula e está satisfeita com a política econômica. Era preciso esmiuçar e dizer: “O que está acontecendo é o seguinte: isto, isto e isto”.

Bernadete Abrão – Com toda essa luta de classes ele teria espaço?
Vai ter que criar, é para isso que ele é um líder político. Ele precisa criar esse espaço, por isso algumas coisas que vou colocar aqui vão nessa direção. Ele não criou as condições para que pudesse se exprimir. Tenho muitas criticas que vou fazer ao governo e ao partido.

José Arber Jr. – Recuando um pouco a mais no passado, um ano que pra mim teve importância central foi 1982. Até 1982 a eu participava dos núcleos do PT, a uma reunião num núcleo de um bairro iam a dona de casa, o gari, o professor universitário, o operário, e a gente discutia política internacional, política nacional, políticas públicas, problemas do bairro, estrutura, votava-se e era uma decisão soberana. EzT1 1982, o senhor Luiz Inácio se candidatou a governador. A partir o daquela data, as discussões do núcleo cada vez mais eram onde confeccionar camisetas, fazer faixa etc., e o núcleo perdeu completamente a vitalidade, o partido virou uma máquina de produzir candidatos a deputado. Então, se existe uma genealogia dessa crise, ela tem que ser buscada num processo de cooptação do PT pras instituições de Estado.

Vou falar disso, mas não coloco tão lá atrás, você tem lá um sinal, mas acho que isso aconteceu e pra valer a partir dos anos 90. É a partir daí que a coisa acontece nessa dimensão e destroça internamente o PT.

Marina Amaral - Uma dúvida que a maioria das pessoas tem quando a gente fala nesse assunto é que, se o e governo foi tão conservador que acabou se repetindo politicamente e na economia, por que então esse interesse das elites em derrubar o governo?
Isso está vinculado à única maneira pela qual os partidos políticos operam, que são as questões eleitorais, eleições pra governo do Estado e presidenciais. Não penso que seja uma discussão em torno da correção ou incorreção do governo e da sua política econômica, tanto que alguns amigos meus, lendo os jornais, lendo os ataques, costumam dizer o seguinte: “Mas não dá pra entender, a política econômica é exatamente o que queriam que fosse, a política social é tão tímida como queriam que fosse, e, portanto, devia haver elogios e não critica”. É que a questão é de uma disputa efetivamente partidária, eleitoral...

Hamilton Octavio de Souza - O PT virou concorrente dos partidos tradicionais, não é isso? Passou a usar as mesmas práticas...
E ele não tinha outro jeito a partir do momento em que decidiu entrar em eleições. Essa é a questão. A discussão tem que ser, aí, sim, lá atrás, termos discutido longamente se entrava ou não em eleições.

Hamilton Octavio de Souza - A saída desse emaranhado tratando da luta de classes seria mudar a tática, a esquerda ter um outro projeto?
Não. Estou pensando em desmanchar o emaranhado daquilo que está aqui. E não do que deveríamos fazer pra frente. Desmanchar o emaranhado é “vamos entender o que está se passando”. Não tenho nada propositivo, por enquanto, por enquanto estou numa atitude mais descritiva. Ao me preparar para a conversa com vocês, pensei em fazer o seguinte: uma coisa descritiva, depois observações críticas sobre o governo, observações críticas sobre o PT, o que acho que valeria a pena fazer, e depois a apologia do meu governo. Eu trouxe todo o material que mostra como ele é bom.

Jose Arbex Jr. – O governo Lula mandou pros bancos 210.000 toneladas de ouro em 2004, o governo Lula está privatizando, o ProUni é a privatização da universidade...
Ah, não é, e eu conheço o ProUni por dentro porque ajudei a discutir.

José Arbex Jr. – É tirar dinheiro público e entregar pros piratas da educação.
Não, não, não. Não vai um grama de dinheiro público.

José Arbex Jr. - Vai isenção de imposto.
É porque eles nunca tinham pago. A idéia é: já que consta que tem a isenção e que eles não pagam o imposto, vamos fazer de conta que é isso mesmo, já que é assim, q o que eles vão pagar? Vão pagar da seguinte maneira porque era uma coisa da qual o governo não tinha nenhum u controle. Iam pro ralo bilhões nisso. O que você tem é o contrário, é o controle do governo sobre isso. Precisa ver com detalhe o projeto, porque que na Câmara as mantenedoras queriam acabar com o projeto, não queriam permitir nem sequer que ele fosse discutido. Foi uma luta sem fim e muito se mexeu ali porque as associações de docentes, de estudantes, a Andes não foram lá defender uma posição. Atacaram. Então, se você tem o ataque dos seus supostos aliados e o ataque dos seus adversários, é claro que uma parte do projeto é desmanchada. Precisa levar isso em conta, mas garanto que o ProUni é exatamente o contrário.

José Arbex Jr. - Ainda que fosse isso, comprar' vagas na escola privada com dinheiro público mediante isenção de imposto não é igual a construir universidade pública sob tutela do Estado obedecendo a estratégias determinadas por um plano nacional.
Você tem toda a razão. Mas se ''OCê não tem recursos públicos para ampliar a rede pública nem condições econômicas e políticas para se apropriar das universidades particulares, pode pelo menos aumentar o controle sobre elas. E isso o ProUni faz.

José Arbex Jr. - Ele está criando universidades federais no Rio Grande do Sul que servem aos interesses dos latifundiários locais.
Não, no Rio Grande do Sul, no ABC, em Mato Grosso, no sertão de Pernambuco, eu contradigo você nesse ponto e não há condição no estado atual de vulnerabilidade da economia brasileira de abolir as instituições de ensino superior privado. Você pode frear, impedir, marcar posição, exigir, controlar com todas as exigências, fechar se necessário, mas não há condição atual de tornar publicas essas instituições privadas. O que você pode fazer, e é isso que estamos fazendo no Conselho Nacional de Educação, é limitar o surgimento das instituições privadas e ter um um controle rigorosíssimo sobre elas. Mas deixa eu voltar onde eu estava.
José Arbex Jr. - Você estava no terceiro ponto político.
E o terceiro é que, do mesmo rnodo que você tem a morte anunciada, você tem uma crise anunciada, que é a forma que a luta de classes tomou na atual conjuntura. Então penso que se trata de tentar desembaraçar esse emaranhado, do lado do partido e do governo. Trata-se, em primeiro lugar, da necessidade de tentar distinguir entre uma cúpula partidária irresponsável politicamente, com membros delinqüentes, e o conjunto dos políticos petistas probos, responsáveis, com uma historia de grandeza que não pode ser jogada na vala comum da corrupção. Também acho que precisa distinguir entre as direções partidárias e o conjunto da militância petista e dos eleitores petistas, ou seja, penso que uma das tarefas dos petistas é compreender o que está se passando, de modo a não permitir que se joguem no lixo da história as lutas e as conquistas dos trabalhadores brasileiros no campo de uma cidadania concreta, uma democracia substantiva. Acho que o partido precisa reunir os filiados não para discutir como eles se reorganizam institucionalmente, porque foi isso o PED; ele tem que reunir todos os filiados e explicar o que se passa, oferecer todas as informações necessárias, todas, convocar a comissão de ética para averiguar os fatos, as acusações, saber quais são verdadeiras, quais não são, e não pode esperar o fim da CPI pra fazer isso. A comissão de ética do partido tem que ser acionada imediatamente pra isso, porque senão ele perde qualquer capacidade de reorganização. Acho também que o governo e o partido têm que se dirigir à sociedade como um todo e oferecer os dados verdadeiros. Pese o que pesar, doa a quem doer. Mas tem que ser dados confiáveis, sobre os quais você se apóie de tal maneira que possa neutralizar o bombardeio dos veículos de comunicação.



Marina Amaral - Será que não é porque não tem o que dizer? Eles tiveram mil oportunidades, a direção do partido, o presidente Lula, todos poderiam ter falado. Será que existe essa explicação?

Acho que existe e que ela não foi feita por causa do que aconteceu com a estrutura do partido. Isso é que vai pesar.



Marilene Felinto - Mas há uma gama de simpatizantes enorme que não participa dessas reuniões de filiados. Como o partido conseguiria informar esse público, que são pessoas completamente desinformadas? Não sei se dá tempo ainda de passar essa explicação se o partido não tem acesso aos meios de comunicação.

É imperdoável ele não ter feito isso, é inacreditável. Em vez da comunicação, o governo optou pelo marketing. É essa opção que impede que ele efetivamente chegue à sociedade e aos filiados. Porque escolheu o caminho da despolitização e eu sou critica com relação a isso, porque, conhecendo o Lula como conheci, a idéia de que ele precisaria de um marqueteiro para falar é inconcebível.



Hamilton Octavio de Souza - Acho que tem muitas coisas que não podem ser contadas. Por exemplo, esse caixa no exterior, se contar como o PT montou um caixa no exterior é algo difícil de confessar publicamente. Admitir erros...

É que eles não acham que erraram! Eu vou chegar lá, àquilo que considero ser a causa disso tudo. Construí a minha análise por camadas, indo do visível ao menos visível, e ao invisível. Vou chegar lá, acho que a gente vai discordar em muitas coisas, mas não vou deixar de tocar nesses pontos todos porque é impossível não tocar nessas coisas. Agora vou fazer algumas observações sobre o governo. A primeira característica desse governo é a despolitização. Ele não é um governo de esquerda. Não assumiu a perspectiva da luta de classes. Portanto, não assumiu a necessidade de ter como prioridade todas as políticas que estão montadas para os direitos e interesses das classes trabalhadoras e das camadas populares.



Renato Pompeu - O que a senhora entende por luta de classes no Brasil hoje? O professor Armando Boito fez uma pesquisa no ABC e descobriu que os operários de lá apóiam a globalização, apóiam a política econômica porque têm mais telefone, porque não querem interferência do Estado nas negociações com o patrão, querem negociar diretamente. Estão satisfeitos com as coisas como estão e isso é a raiz do comportamento do PT, certo? O que a senhora chama de luta de classes?

Mas isso é um elemento importantíssimo da luta de classes! Olha a hegemonia burguesa em cima deles! Desmontar isso é efetivamente uma tarefa política. Isso não é a abolição da luta de classes, é a forma que ela está assumindo. O chamado pensamento hegemônico. Assim como no final do século 19, através da escola, dos sindicatos, de uma série de operações, você tem a incorporação do proletariado à ideologia burguesa pra valer, temos agora a incorporação da classe trabalhadora à ideologia neoliberal pra valer, e esse é um dos objetos fundamentais da luta. Pelo menos é a isso que me dedico, a desmontagem dessa ideologia, que é o surgimento dessa noção de sociedade do conhecimento. E o lugar que o conhecimento passa a ocupar como força produtiva. Ele é considerado o princípio ativo fundamental das empresas. Então, o que aconteceu com o saber, o conhecimento, o pensamento é a sua absorção sem restos pelo capital. E essa absorção sem restos pelo capital faz com que, do ponto de vista ideológico, você tenha a classe operária, por exemplo, aderindo a esse pensamento. Então acho que a tarefa política, que me dou pelo menos, é de destruir em todos os recantos e de todas as maneiras essa ideologia. O que torna a luta de classes tão difícil, quase invisível para nós, é essa interiorização da ideologia como explicação verdadeira da realidade e reguladora de nossas práticas.



Hamilton Octavio de Souza - E o que faz um partido que reuniu a esperança do povo brasileiro nos últimos 25 anos quando se defronta com uma situação de luta de classes como essa que a senhora descreveu?

Vamos chegar lá. A minha tentativa é de entender por que ele não fez. Bom, então procurei os sinais dessa despolitização. O primeiro sinal, cheguei a escrever a esse respeito, surge antes da posse do Lula. É a chamada transição, que chamo de a grande armadilha tucana. O governo incorpora como sua a agenda do PSDB, em lugar de uma exposição clara, precisa, completa da situação econômica, social e política do país e das medidas que teriam que ser tomadas, sobretudo naquele primeiro instante, porque tinha o apoio de 52 milhões de pessoas. Tinha força para fazer isso. E se dobrou. Não acho que ele teria condição de uma política econômica de ruptura, as condições internacionais e internas não permitiriam. Mas isso é diferente de não fazer a devassa. Agora, o problema que vejo e que vi acontecer em outras ocasiões é que a operação da economia tem uma lógica própria que devora seus agentes e faz deles seus meros instrumentos. Por isso o Marx dizia que o capitalismo não tem sujeito, o único sujeito no capitalismo é o capital. Então, a equipe econômica não é perversa, não é mal-intencionada. Ela é autista. Ou seja, é incapaz de levar em conta o mundo exterior. Se ela é autista, como toda e qualquer equipe econômica, não adianta os ministros, os petistas e o presidente da República argumentar com ela. Não haverá argumentos. Você tem de impor mudanças. Esse é o primeiro ponto da agenda política do governo, que não foi feita com autonomia: a maneira pela qual a transição se transformou em política econômica por uma lógica própria a ela. A agenda também foi feita por uma adequação continua do governo às críticas feitas pela mídia. Essa despolitização causou um erro de timing fantástico. Veja, temos aí o famoso problema da governança, é a real esse problema. É a herança que o GoIbery deixou para nós no final da ditadura. Quando percebeu que o MDB venceria a Arena, o que ele fez? Criou os biônicos, a atual legislação partidária, dividiu o território, transformou o território em Estado, enfim, toda essa deformação inacreditável do sistema representativo é um legado de Golbery para a política brasileira. O resultado disso é que nunca o Poder Executivovo terá maioria. Então, se há um problema de governança por causa disso, a primeira reforma que você faz é a reforma política. É ela que tem que entrar já, como resposta verdadeira de que vai haver uma reforma do Estado brasileiro. Bom, o segundo elemento desse erro de timing é: se esse governo não pretende só fazer transferência de renda, mas como um governo de esquerda, fazer a redistribuição da renda, teria que começar pela reforma tributária. A tributaria e a política eram as duas primeiras reformas que precisariam ter sido feitas. E é claro que, para assegurar a esfera institucional dos direitos, levando em conta sobretudo a possibilidade de radicalização dos movimentos sociais, era preciso uma reforma do Judiciário.Em.vez disso, o governo começa pela reforma da Previdência. Ainda como sinal da despolitização, coloco a incapacidade de simbolização por parte do governo. Ele lança, solto no ar, o Fome Zero como se fosse um s1ogan de marketing. Havia todos os elementos para que o Fome Zero fosse a política e o símbolo desse governo, porque inclui nela a reforma tributária, política, do Judiciário e a cidadania substantiva da classe trabalhadora. E o último sinal dessa despolitização da fala presidencial. A comunicação se fez sob a lógica do marketing, e não do direito à informação. Para quem, corno eu, acompanhou a vida política do Lula, viu não só em 1978 mas no correr dos anos a capacidade analítica, a argúcia, a presteza na compreensão, a intuição do todo, a palavra exata na hora exata. Um político desses não precisa de marqueteiro! O que é que o marqueteiro fez? Destruiu o discurso político desse sujeito político, que por isso passou a ter um discurso da vida privada, pueril, moralista, populista, foi um desastre. Porque ele se apropriou de uma máscara discursiva que é a negação da capacidade de pensamento e de linguagem que ele tem.



Hamilton Octavio de Souza - A que a senhora atribui a descaracterização da história toda do Lula, essa involu­ção dele?

Não acho que é involução do Lula. É outra coisa. O que sempre se disse para explicar por que a gente sempre per­dia a eleição é que entrávamos para perder. O que sempre se disse - e mesmo de alguns governos do PT cujo reco­nhecimento veio milhares de anos depois - é que o PT tem uma linguagem para os setores organizados da sociedade, mas é incapaz de se dirigir aos setores não-organizados e à classe média em geral. De alguma maneira, nós petistas in­corporamos essa idéia, de que tínhamos de ter um discur­so para a sociedade como um todo. Ora, na hora em que o marketing aparece como assegurando a eleição, significa que finalmente o marketing ofereceu ao PT o discurso que ele não tinha, o discurso para a grande massa desorganiza­da. Então, "é com esse discurso que eu vou falar". Precisa­mos de um discurso para os desorganizados, mas não o do marketing, pois este mantém a desorganização social.



Hamilton Octavio de Souza - O Lula virou uma caricatura dele mesmo.

Não uma caricatura, mas uma personalidade política con­vencional. Ele sempre teve força de pensamento e de dis­curso, clareza, compreensão, não precisava submeter-se ao marketing.

Hamilton Octavio de Souza - A senhora acha que ele tem um projeto hoje?

Se você considerar que o governo Lula teve força para não fazer empréstimo do FMI, que no início de 2006 teremos autonomia petrolífera, etc, então acho que a idéia é: estabi­lizada a economia, o governo disporá de todos os recursos para as políticas sociais, e a reeleição permitirá também as reformas que ainda não foram feitas. Bom, acho que o segundo problema desse governo foi a incompreensão ins­titucional. A escolha das alianças, optando por legendas de aluguel em vez de partidos, e a falta de controle sobre as alianças, em primeiro lugar. Quem conhece na história parlamentar as lutas entre o Genoino e o Roberto ]efferson e viu o papel do Roberto ]efferson no governo ColIor não pode compreender que ele fosse um aliado e estivesse den­tro do governo Lula. Depois, a má condução do processo de eleição da Câmara. E depois houve erro de avaliação, do ponto de vista institucional, que foi considerar que as elei­ções municipais eram decisivas para a reeleição. Erro que nenhum petista pode cometer, porque todos sabem que os elementos que compõem a eleição no nível do poder local são completamente diferentes do nível federal. Por último, a lentidão, desde o começo do governo, nas respostas aos problemas e as decisões. Então, embora eu ache, e tenho dados para mostrar para vocês que é um bom governo, não é evidentemente um governo de esquerda e tenho todas essas críticas a ele. Agora vamos à ferida exposta. Vamos falar do PT.



Hamilton Octavio de Souza - A ligação governo e partido como deve ser?

De autonomia. Se o partido não for autônomo com relação ao governo, ele é inútil. A função primordial do partido é ser ininterruptamente o elemento mais crítico do governo, o termômetro do governo e o mobilizador social em favor das políticas sociais do governo.



José Arbex Jr. -. Acho que teve um administrativismo ingênuo por parte de muitos militantes petistas, que acha­ram que assumindo um posto de direção iriam mudar as estruturas. Você não acha que houve um voluntarismo administrativista de boa parte do PT?

Não posso me pronunciar porque efetivamente, afora essa ida mensal que faço ao Conselho Nacional de Educação e a minha relação com algumas questões do Ministério da Educação, não tenho familiaridade nenhuma com o go­verno, nem com os membros do governo. Nada.



José Arbex Jr. - Quer dizer, esses bastidores do dia-a-­dia, você não participou deles?

Nada. Desde o começo não quis, foi uma decisão minha mesmo. Não posso dizer como pensam e como agem por­que fiquei longe mesmo.



José Arbex Jr. - Inclusive me surpreendeu sua aceitação em ir para esse Conselho, porque você havia me dito, numa entrevista de muitos anos atrás, que a tua descri­ção mais próxima do inferno era justamente a participa­ção no governo.

Primeiro, o inferno é a administração e ser conselheiro não é um cargo ou qualquer coisa administrativa. Mas o que houve foi que os primeiros ataques ao governo esta­vam acontecendo, foi o momento do caso do Waldomiro Diniz, e o Tarso Genro me telefonou e eu disse: a minha previsão, como eu esperava o impeachment toda manhã, era de que iria haver efetivamente um ataque sem prece­dentes ao governo e não era exatamente num momento em que ele aparecia enfraquecido que eu não participaria. Se esse convite tivesse vindo num momento em que não havia problema nenhum, eu não teria aceitado. Porque não aceitei outros convites. Então, aceitei por compromisso político, por achar que não seria digno politicamente não colaborar com um governo que está sob ataque. E a minha ilusão era de que ou acabaria porque haveria o impeach­ment ou acabaria porque tudo se resolveria, e aí eu sairia. Estou esperando. Cada vez que eu aviso lá no Conselho, "possivelmente não voltarei", aí acontece alguma coisa.



Wagner Nabuco - O ataque foi tão forte que uma pessoa da qualidade do Tarso Genro respondeu a um estudante que perguntou pra ele que motivos teria para votar de novo no PT e ele disse que naquele momento não teria nenhum motivo para convencer alguém a votar no PT...

A perplexidade, a desorientação num primeiro momento foram muito maiores do que a gente imagina. Esse im­pacto foi muito violento, porque, por mais que os petistas soubessem da existência de caixa dois, jamais imaginaram a forma da operação, não só o tamanho da dívida, mas o fato de a forma da operação ser a transgressão de todo e qualquer princípio republicano. Eu encontrava os petistas e eles estavam completamente atordoados. Hoje vi no jor­nal que o Delúbio Soares gerenciava contas do PSDB de não sei onde...



Marina Amaral - Goiás.

Isso dá um curto-circuito na cabeça de qualquer petista.



Natalia Viana - A senhora não imaginava o caixa dois, como era feito?

Eu nunca soube que existia até aparecer o “caso Valdomiro”. Qual é a minha objeção ao caixa dois? Primeiro, por­que sendo secreto, ele conduz a uma improbidade pública. Você não pode fazer isso. Então, quando escrevi em jornais e falei em reforma política era disso também que eu falava, isto é, de mudanças institucionais para que a improbida­de pública seja impossível. Em segundo lugar, porque você não sabe mais quem o seu representante está representan­do, já que desconhece os interesses que o financiaram. A idéia de representação já é precária na sociedade capitalis­ta e no Brasil, é mais precária ainda por causa da estrutura autoritária da sociedade brasileira. É transformada numa relação de clientela, de tutela e de favor. Você perde a no­_ão de representação. O representante acha que manda no representado e que distribui favores ao representado. Se a noção de representação já é problemática do ponto de vista da democracia, é mais problemática ainda numa sociedade autoritária como a brasileira, e se toma irrealizável quan­do você tem o financiamento secreto das campanhas. Eu não tenho uma visão instrumental do PT. Se tivesse, diria: “Tudo bem o caixa dois, tudo bem o marketing, tudo bem não sei o que”. Porque a visão instrumental diz que lá no fim do túnel está o socialismo e eu uso esse instrumento que me levará até lá. Não tenho essa visão, penso num proces­so histórico. Penso o partido de esquerda como uma ação de criação histórica e, portanto, que ele é o que ele faz. Ele cria seu próprio caminho. Ele não sabe onde vai chegar, mas tem um horizonte ligado ao motivo de seu surgimento. No caso do PT, o horizonte é aquilo que foi o lema de sua cria­_ão: a igualdade social, a justiça econômica, a participação política, a inclusão cultural. Ou seja, a criação de uma cida­dania substantiva no Brasil. E é por isso que digo que ele foi o principal agente da democracia no Brasil. Não foi o único, mas foi o principal, porque não operou apenas com os direi­tos civis da democracia liberal. Ele lidou com a criação da cidadania plena, criação dos direitos econômicos, sociais, políticos, culturais. Então, é mais do que os outros agentes democráticos propuseram.



Wagner Nabuco – Isso, cidadania, não parece um dis­curso tucano?

Não, nós pusemos na cena política brasileira o discurso da cidadania plena e ele foi apropriado com outro sentido pe­los tucanos. Vivemos numa sociedade socialmente auto­ritária polarizada entre a carência e o privilégio. E por isso não há direitos. Então, a luta contra o privilégio e contra a carência é a luta pelos direitos e, portanto, pela criação de urna verdadeira cidadania.



Hamilton Octavio de Souza – O partido preserva esse espírito fundador hoje?

O partido sim, as direções não. Qual era o formato que o PT tinha? O formato de um partido de militância. Ou seja, o partido que existe 365 dias por ano, e não o partido eleitoral que se reúne nos períodos das eleições. E é interessante, porque isso significou que o PT nasceu contra a corrente da ciência política dos anos 80, que assegurava, por meio pesquisas, tabelas, teorias, que tinha acabado a era dos partidos de classe, dos partidos de militância e que era a dos partidos de massa. Então, uma das primeiras críticas que o PT recebeu do tucanato foi exatamente essa, que ele era arcaico, que não correspondia às necessidades políticas reais do presente, que exige partidos de massa. E eu me lembro das primeiras indagações que a gente fazia nos núcleos do PT e nos encontros e mesmo nos diretórios. Cheguei a ser membro do diretório municipal e do diretório estadual nos meados dos anos 80. A pergunta era se devíamos ou não participar das eleições. E depois de muito debate o se decidiu foi que participaríamos das eleições para aproveitar o horário gratuito no rádio e na televisão para politizar as questões e ampliar a filiação. Acontece que, malgrado essa intenção, a gente elegeu parlamentares. Eu me lembro do Zé Ciccotti chegando no diretório estadual muito bravo, ele tinha sido eleito deputado. Chegou muito bravo e disse: "E agora? O que eu vou fazer quando todo mundo sabe que deputado é canalha?" Estava desesperado, não sabia o fazer com aquilo. Ele queria saber se podia renunciar. Diziam pra ele: "Não existe renúncia de deputado, você pode não tomar posse". explicaram pra ele que era importante, um operário, o papel que ele tinha tido nas greves no ABC, que ele tinha que tomar posse, que marcava posição e tal. E ele foi, muito contra a vontade. Bom, ao serem eleitos os primeiros parlamentares,foram tomadas duas posições formidáveis. A primeira era a contribuição, parte do salário para o partido. Mas a segunda era o rodízio. Então, elegemos quatro deputados, eles ficam lá um ano, no ano seguinte entram quatro novos, que eram suplentes. E assim sucessivamente durante quatro anos. Então teria um bando de gente com experiência do parlamento. Por quê? Para termos clareza como você enfrenta o Poder Legislativo. Era uma perspectiva de combate, você exercitava a função institucional para conhecê-la por dentro e saber como lutar nela ou contra ela. Bom, daí, mais alguns anos, o PT viraria um partido com predomínio dos políticos profissionais, e isso definiu uma nova concepção de política partidária, ao mesmo tempo em que foram feitas direções partidárias com uma concepção centralista, verticalizada, hierárquica, que exclui a participação dos filiados. Por isso que é complicado falar em erro, equívoco ou perda. Na verdade, o que se teve foi a vitória de uma concepção da política partidária e da política em geral, a vitória de uma concepção centralista, verticalizada, hierárquica e que exclui toda a base.



Marina Amaral - O Campo Majoritário é que provocou essa mudança?

Não, é uma formação anterior ao Campo Majoritário, que é Articulação. A Articulação vem com a exclusão da participação direta dos filiados, não dando importância às formas participativas da base, e com a destruição de todas as formas de base, de discussão e de intervenção social e política, porque ela tem uma concepção de partido que é contrária à concepção que esteve no nascimento do PT.



Marina AmaraI - Mas o Lula participou disso, fechou com esse campo, né?

Sim, ele sempre fez parte da Articulação. Então, passam comandar o partido aqueles que têm força eleitoral. E tem força eleitoral quem recebe os recursos coletados pela direção. E quem recebe esses recursos? Quem se alia à concepção partidária da direção. Depois, vai-se adotando a perspectiva de marketing e as campanhas vão deixando de ser os momentos de alta politização social. A eleição do Lula eu não sei porque não participei, mas a eleição da Marta eu sei porque todo mundo falava: “Você substitui a base petista por profissionais”.Mas por quê? Porque a participação do militante, como é voluntária, é caótica. Quando ele pode, do jeito que ele pode. Ou seja, nenhuma máquina tem controle sobre a militância. Então tem lá os caras que você paga e controla, né? E o que vai aconte­cendo é que essa organização vertical, dirigista, centralista autoritária e burocrática impera e é vinculada à lógica eleitoral e aos políticos profissionais. O que você tem é a idéia de que todos aqueles sobre os quais você não possa execer controle não podem fazer parte da organização partidária. E você exclui a militância propriamente dita. Eu quero enfatizar que isso não é uma perversidade psicológica, isso é uma concepção de política. As direções estão convencidas de que estão certas, porque realizam uma concepção de política.



Marina Amaral - Mas, professora, com uma visão dessas sobre o PT e, afinal de contas, o que te fez continuar no partido?

Primeiro, porque nunca identifiquei o PT com as direções petistas. Independentemente da fragmentação, da desor­ganização, da exclusão da base petista, ela existe. E opera nos movimentos sociais. Onde houver um movimento social pra valer, propondo efetivamente mudanças, você pode ter certeza de que a base petista está lá. Então, talvez porque eu tenha um elemento anarquista muito profundo, o fato de eu não identificar o partido com quem dirige fez com que eu considerasse historicamente muito ruim a concepção política dirigente. Apesar disso, ela nunca foi um obstáculo para mim, para uma prática petista no inte­rior da sociedade. Então, como crítica da ideologia, como participante de movimento social, como debatedora de políticas existentes, crítica do neoliberalismo, crítica da globalização, isso para mim é ser petista.



José Arbex Jr. - Teve um processo longo na história do PT que se agravou depois que o Lula chegou à presi­dência, o processo que combinou duas coisas: terror interno, contra a dissidência, contra qualquer discussão, combinado com o processo utilizado amplamente pelo Stálin, que foi filiação em massa de dezenas de milhares de militantes que nunca tiveram nada a ver com combate social. O PT hoje virou uma meIeca. Então será que existe possibilidade...

Eu  estava mostrando os efeitos da lógica eleitoral de o PT  ter se tornado um partido com políticos profissionais. O quarto efeito é exatamente esse, que é a filiação indiscriminada. Você filia seguindo essa lógica,e nenhuma outra, na medida em que você identifica a ação fundamental do partido com aquela que é produzida pelo resultado eleitoral. No início, a eleição era um elemento da militância partidária, depois a direção partidária transformou as elei­ções e os resultados eleitorais na prioridade e na forma de ação do PT. Mas isso não fez com que a base partidária e as correntes, a multiplicidade de correntes, deixassem de existir. Elas estão lá e agindo. Só que você tem um campo vitorioso, que é o Campo Majoritário.



José Arbex Jr. - Dado esse mele produzido depois do período de terror e filiação em massa, a pergunta é uma certa provocação: quando você fala da possibilidade de uma retomada do PT, não existe uma mitologização de um PT das origens, puro etc., ao qual se quer voltar mais por uma razão afetiva e não querer abandonar 25 anos de história do que reconhecer uma derrota histórica e falar "bom, vamos começar tudo de novo porque essa já foi"?

Não, não vejo assim. Não posso responder por outras pes­soas, no meu caso tem a idéia clássica de que esses 25 anos acumularam forças. Elas estão no momento dispersas, irreconhecíveis, com problemas, mas elas existem. Esse período de 25 anos trouxe possibilidades e compreensões na sociedade brasileira que não existiriam sem essa ação política e social. Isso também está posto, não tem que vol­tar a isso. E acho que refundar significa ser capaz de insti­tuir um sujeito político coletivo novo. Você tem que fazer uma análise, uma reflexão profunda sobre a forma atual do capitalismo, a sua expressão neoliberal, a globalização, e pensar, no caso do Brasil, o que isso engendra como um contrapoder político, social. Não é querer engatar na his­tória dos anos 70, mas buscar um sujeito político novo, como foi novo o sujeito político dos anos 70.



José Arbex Jr. - Mas por que isso passa pelo PT neces­sariamente?

Porque ele tem uma história poderosa, importante.



Hamilton Octavio de Souza - Precisa ter energia transfor­madora, tem isso?

Que merece a pena lutar por ela, não tenho dúvida. Con­tinuo petista. Participo de discussões na Fundação Perseu Abramo, Instituto Cidadania e lugares onde há centros de discussão no Brasil que me convidam. Mas estou fora da estrutura partidária.



Marilene Felinto - O que você responderia a esse aluno que perguntou ao Tarso Genro que motivos teria para votar no PT?

Que deveria votar, sem dúvida. Com todos os problemas que há, essa é ainda a expressão de uma visão de mudan­ça da sociedade brasileira. Diria que votar no PT hoje, apesar da direção partidária, apesar dos problemas do governo, é não aceitar a resignação de que sociedade brasileira é assim, a política brasileira é assim e não há o que fazer. Não, está tudo por fazer, nós vamos fazer e temos história acumulada para fazer.



José Arbex Jr. - Você está falando da tradição do PT, do resgate do PT etc., só que acabou de haver uma eleição no PT e o terror dos velhinhos foi conduzido à direção do partido. Essa condução do Berzoini à presidência, na minha opinião, encerra  um ciclo ideológico dentro do PT que comparo hoje a um bicho empalhado daquele animal que lhe deu origem. Não vejo como, dentro desse concreto, resgatar o que existe de melhor dentro do PT.

Não vejo assim. No grupo de discussão de que participo foi feita uma avaliação muito interessante, não há nenhuma corrente majoritária mais. Então, você vai ter que, efetivamente, compor essa direção. E vai compor com tendências que lutaram sempre contra a perspectiva do Campo Majoritário. Então é muito cedo para dizermos que a figura do Berzoini está incluída numa conjuntura partidária inteiramente nova. Vai ser a primeira vez que nenhuma tendência pode se apresentar como majoritária e vai haver, não só do diretó­rio, a composição da executiva nacional. Então acho que é preciso ficar no compasso de espera para saber o que vai acontecer. O mais difícil nem é isso, o mais difícil é desmontar para valer a estrutura da política profissional e a estrutura de um aparelho profissional burocrático que  faz o partido funcionar.



Wagner Nabuco - Mas como disputar eleições de verea­dor, prefeito, governador, se você também não tiver uma estrutura de trabalho real, que seja rápida para fazar as coisas?

Nós temos que inventar, porque é esse raciocínio que le­vou o PT onde ele está. É porque a gente acredita que tem que ser assim, que só assim funciona, que a gente fez toda a besteira que fez.



Bernadette Abrão - Quando lhe perguntei se era possível fazer alguma coisa diferente no Brasil sem o caixa dois você disse que não, e não só no Brasil, mas no mundo.

Estou dando por estabelecido que um dos resultados des­sa chamada crise é uma mudança na forma da campanha eleitoral. Pra já, pra depois de amanhã. Nem que seja um dispositivo legal qualquer que estipule a forma do finan­ciamento e a publicidade do financiamento.



Bernadette Abrão - Isso pode ser feito por esse parlamento que temos hoje?

Não sei, mas tem que tentar. Acho que é para isso que um partido de esquerda serve.



José Arbex Jr. - Durante os últimos anos, a bandeira que unificava não só o PT, mas a esquerda toda, era o Lulalá. Era o calendário eleitoral, saber quem será próximo deputado, vereador, o salarinho de onde vem, o empreguinho de onde vem. Agora espero que haja uma plataforma de combate concreta.

Acabo de dizer que estamos no interior de um processo que implica desmantelar a forma da organização partidária, repensar a questão da participação eleitoral, se reorganizar para que seja um partido de militância. E isso é um ­processo lento, não posso decretar amanhã que mudou. ­A mesma coisa com relação à noção de um projeto e de um programa. Em curto prazo, o que escuto em toda parte da base petista é a exigência da mudança na orientação do governo, fundamentalmente na política econômica, de tal modo que as políticas sociais se realizem. É disso que os petistas estão falando. A própria militância se dá conta ­de que pode intervir nesse processo, e que as direções não podem ser onipotentes.



José Arbex Jr. - Está havendo, de fato, um processo nacional de discussão na base?

Ah, sem dúvida. Enorme, em toda parte. E de uma riqueza...



Hamilton Octavio de Souza – Nessa linha de refundação, o diretório nacional decidiu pela expulsão de Delúbio? Isso é um fato que Isso é um fato que contribui?

Sim. sem dúvida.Olha, fui a vida inteira contra expulsões. Desde o começo, com a Bete Mendes e o Aírton Soares. É inaceitável a expulsão de um quadro partidário por causa das suas concepções políticas, mas no caso do Delúbio é diferente, é um caso de delinqüência. Mesmo que você diga que a iniciativa não é dele. O fato de considerar que vai “tudo bem, obrigado”, e não avalie o que significou para a juventude petista a figura dele, faz com que você tenha que dizer: "Delúbio, você se enganou de parti­do. Você tem que sair desse”.



Marina Amaral - Será que ele se enganou? Qual o tama­nho do PT envolvido no escândalo?

Mas quando a gente discutiu o que é preciso fazer, eu propus que a comissão de ética do PT não espere resulta­do de CPIs, se reúna, examine todas as acusações e tome posição e decisão. Tem que fazer isso. É que o caso do Delúbio é diferente dos outros porque o Delúbio acabou ficando exposto mais do que todos os outros.



Marina Amaral - Mas, se já havia essa concepção de política dominante no PT, descolada das bases, pra ga­nhar eleição etc., se pelas regras eleitorais atuais seria impossível fazer eleição sem recorrer ao caixa dois, en­tão onde se errou?

Mas não errou, é isso que estou dizendo. Não houve erro. É por isso que nenhum deles diz, e nem pode dizer que errou. Porque é uma concepção da ação política.



Marina Amaral - Que é a corrupção do bem?

Que é a corrupção do bem. E que, portanto, não é corrupção. Você percebe? Não estamos diante de uma situação em que eu digo "a política é feita assim, assim, assim, e esses sujeitos maus-caráteres, sem ética, sem moral, vieram aqui e sujaram a política brasileira", que é o que o PSDB e o p PFL estão falando. O preconceito de classe, então, é levado às últimas: o Serjão pode, o Delúbio não pode, sabe como é? Ora, não é isso. Não dá pra fazer uma avaliação de tipo e moral, é uma concepção de política que está lá, você pode se opor politicamente a isso. Por exemplo, o Arbex se opõe politicamente a isso. Você confronta duas concepções de política. O PSOL vai ter problema, por quê? Porque gente como o Paulo Arantes, Chico de Oliveira considera que um partido de esquerda está aí para fazer oposição, só que o PSOL nasce com parlamentares, portanto dentro do jogo.



Marilene Felinto - Você falou no início que essa escolha equivocada pelo marketing, não pela informação, pela militância etc. é que tornou o governo vítima desse mas­sacre da mídia. Existe alguma outra opção pela comuni­cação? Como ela seria feita num país em que as empre­sas de comunicação são todas privadas, selvagens?

Quero colocar todas as questões dos meios de comuni­cação e do que penso com relação ao governo. Você se importa de eu concluir a respeito do PT e depois esse ser o nosso assunto, que merece uma discussão pra valer? Então, procurei aqui falar sobre o PT narrando um pouco a história e a concepção política que ele tem agora, e os problemas que vieram, porque acho que existem quatro grandes imagens do PT: duas antigas e duas novas.. A pri­meira, que chamo de imagem tradicional, de um modo geral a que sempre foi veiculada pelos meios de comu­nicação, foi explorada, por exemplo, pelo Maluf naquela eleição em que aqueles meninos cantavam: “A gente gosta do Suplicy, não quer o PT rnandando aqui”. Foi explorada pelo Collor também. Essa imagem tradicional é construída a partir de dicotomias. E, se você toma cada pólo da dicotomia, eles são contrários, às vezes até contraditório, você não tem como reunir. E, no entanto, a imagem reúne, porque, como é ideologicamente produzida, ela vai reunir. Então, a imagem começa: ele é um partido totalitário, isso foi dito em 1980. Só que é um partido sempre em crise, porque ele tem inúmeras correntes e tendências internas. Então, você tem um partido totalitário, que tem divisões, tendências e correntes internas, e que por isso está sempre em crise. Depois: ele é um partido arcaico. Por quê? Porque não faz alianças. Ah, não, é um partido oportunista, porque fez alianças. Se ele afirmar relação com o movimento sindical, é um sindicalismo pobre. Se ele se distancia dos sindicatos, está traindo sua origem. Se afirma relação intrínseca com os movimentos populares, ele é basista, se ele toma distância e se dirige à popula­ção desorganizada., é populista. Se elege parlamentares, prefeitos, governadores e um presidente da República, é um mero partido da ordem. Se não o faz, é esquerdista, radical e infantil. Se exige mudanças nos hábitos políticos, em nome da moralidade pública, é principista, moralista e ingênuo, não entende que há zonas cinzentas na política. Mas, se adota os hábitos políticos vigentes, é o mais cor­rupto de todos os partidos. Ou seja, o PT é incompetente e erra sempre. Essa é a imagem...



Marina Amaral - É a página 2 da Folha todinha...

Mas tem uma segunda imagem que está muito reavivada agora e que chamo de instrumental. E essa imagem ins­trumental apareceu, fiquei surpreendida, na fala do geren­ciador de crise lá, do lobista. E ela aparece com todas as letras no artigo que o Gianotti escreveu para a página 3 da Folha esta semana. Que é a seguinte: o país precisa de um partido de esquerda aguerrido como o PT. Portanto, qual é a função do PT? É apaziguar a má consciência. A má consciência fica sendo salva pela existência desse partido, portanto é imperdoável que ele não cumpra esse papel. Pau nele! A terceira imagem, essa é nova, é o que chamei de a imagem melancólica: dobrando-se aos imperativos do capital, o PT, com o governo Lula, deixa de cumprir o seu papel histórico e político, qual seja, deixa de assustar a burguesia e de mudar o Brasil. O PT traiu os petistas, os eleitores, tornou-se um mero partido da ordem, o PT aca­bou. Existe uma quarta imagem, que também é recente, que chamo de imagem por combinação. A imagem que vai combinar as três primeiras. Então, você pode combi­nar a imagem instrumental e a imagem melancólica, e você justifica o aparecimento da figura dos dissidentes, ou a saída do partido. Você combina a imagem tradicional e a instrumental para justificar a incapacidade política do PT. E aí as combinações são várias. Então, o que eu gostaria de dizer a esse respeito, qual a diferença que há entre essas imagens, e a descrição e análise que fiz do PT, eu digo que nenhuma dessas quatro imagens é falsa em si mesma, pois cada uma delas traduz alguma coisa real, algum traço, ou algum aspecto que realmente existe no PT. Toda imagem, como nós sabemos, possui um fundamento: a realidade. A falsidade de cada imagem está em ser, e isso é próprio de toda imagem, tomada unilateralmente como um absoluto, ocultando a complexidade, as contradições e os problemas do todo. E o todo desaparece. Então, quando fiz observações sobre o PT, quase todos os aspectos presentes nas três imagens foram mencionados, por mim, porém nenhum deles foi tomado isolado dos outros, nem apenas combinado com os outros. Acho que é disso que nós petistas estamos precisando, compreender a nossa própria história, o que foi que aconteceu conosco, que tarefa temos enquanto petistas, quais são as possibilidades de uma retomada, uma reorganização do PT, e que visão temos do PT que é capaz de abrigar todas as imagens existentes sobre ele, mas de ver tudo isso como uma complexidade contraditória, que é um campo de luta, o próprio partido é um campo de luta, e a imagem também é uma forma de exprimir a luta de classes. Porque nenhu­ma dessas imagens é gratuita. Então, eu iria por aí, porque isso nos ajudaria a pensar por que não é uma retomada melancólica, ou nostálgica, de um PT que não existe mais. É a percepção de quais são as tarefas que estão postas a partir do PT tal como ele é hoje, da herança histórica que ele tem e das tarefas que ele pode realizar. Há uma espe­rança na base petista que estou vendo no Brasil inteiro.



Hamilton Octavio de Souza - O PT conseguiu aglutinar intelectuais da melhor qualidade, que sempre tiveram um papel determinante, crítico, ajudando a construir um partido combativo e tal. O que aconteceu com os intelectuais?

Eu gostaria de distinguir dois momentos ao falar sobre o os intelectuais. Primeiro: a decisão de que o PT fosse um partido de quadros, e não um partido de vanguarda nem um partido de massa, foi tomada graças à atuação do principal intelectual do partido, o Weffort. Eu participei de vários cursos de formação de quadros que ele organizou no início dos anos 1980. E o CEDEC (criado pelo Weffort para se contrapor ao economicismo do CEBRAP, ao qual ele também pertencia junto com FHC e Chico de Oliveira) foi um espaço decisivo para essa formação. Essa decisão foi muito importante porque integrou os intelectuais à tarefa partidária, deu-lhes um lugar no interior do PT, uma fisionomia que eles não têm em outros partidos. De minha parte, costumo dizer que, na verdade, foram os sindicalistas e os movimentos populares que fizeram a minha formação política e não o contrário. Depois, com as mudanças que as direções impuseram, aconteceu o que aconteceu com todos os militantes de base, que é o fato de que você discute, faz reuniões, propõe análises, traz reflexões, e isso não passa. Então chega um instante em que você diz: “Bom, a gente somos inúteis”.



José Arbex Jr. - Juro que estou tentando me convencer do que está falando, que é possível reconstruir o PT, retomar o discurso interno, que seja combativo etc. A pergunta é: até que ponto a reconstrução é compatível com a defesa de um governo que é uma sucessão de tragédias? Vamos imaginar que existe uma retomada da base petista, ela está discutindo a exigência da mudança da política econômica, e o governo Lula permaneça insensível a isso. O PT vai para a oposição?

Não tem dúvida. Se ele ficar insensível, vai.

Marina Amaral - Bom, vamos ao tema mídia?

Eu fiquei muito impressionada com dois textos que li nos últimos quinze dias. Um deles é do número especial da Caros Amigos­“Como Nascem as Notícias”. Fiquei apavorada, porque eu tinha uma visão crítica clássica sobre os problemas dos meios de comunicação em geral como empresas privadas se definem por seus interesses de mercado e esses problemas no Brasil. Mas preciso explicar melhor porque fiquei tão apavorada com a matéria da Caros Amigos. Durante a atual crise,  quem acompanha o noticiário todos   os dias, e toda semana, talvez não se dê conta – eu só pude me dar conta, porque como expliquei antes, fui tomar con­tato com a situação em final de junho, começo de julho. Meu marido tinha guardado para mim as revistas, os jornais, e eu passei dois ou três dias só lendo sobre essa situação. Fiquei abobada não só, como expliquei, porque cada informação era desmentida na informação seguinte, ou porque o preconceito de classe era uma coisa que tinha aparecido a toda, ou o discurso do tudo igual... não era só isso. Algumas das publicações me deixaram assustada pelo grau da violência. Eu disse, é violento demais! Uma coisa insana, uma fúria que não dá para a gente entender. E por que era E por que era incompreensível para mim? Porque eu dispunha como elemento de análise só da compreensão ampla e mais abstrata dos meios de comunicação no capitalismo. Bom, aí, quando li essa matéria - que eu vou fazer o que o Adauto Novaes está fazendo, ele xerocou e panfleta no Rio de Janeiro -, você não avalia. É uma verdadeira revolução dos meios de comunicação brasileiros. Foi possível com­preender com maior clareza onde está a violência e onde verdadeiramente está a corrupção. Porque o fato de que alguém possa se apossar de dossiês, dispor deles e vendê-los segundo a oferta e a procura e os interesses da hora, e com isso destruir instituições, destruir governos, destruir pessoas, é mais do que a gente pode efetivamente tolerar. Porque uma coisa é você dizer: "No capitalismo tudo é mercadoria, portanto os meios de comunicação são a mercadoria e a notícia é mercadoria, o jornalista é mercadoria". Outra coisa é você ter uma estrutura de tipo orwelliana em que você produz o fato. E produz o fato não porque tenha minimamente um compromisso social, um compromisso político que diz para você: “Eu preciso fazer isso”. Não: você produz o fato, porque você vende o fato. Então me dei conta, lendo essa reportagem, não daquilo que a gente já sabia, que é o pode­rio das empresas de comunicação, mas é o quanto a sociedade brasileira está desprotegida diante disso. Porque ela é levada a interpretações, a tomadas de posição, a práticas a partir de decisão inteiramente cínica e violenta de alguns a    respeito de qual é a informação que vai ser dada, quando, de que modo, e com que fim. Então, o grau da manipulação ultrapassa tudo o que eu tinha pensado a respeito da publicidade, do marketing. É a realização efetiva, na minha opinião, de uma atividade fascista. O resto é brincadeira de criança. Então, ver essa operação como uma coisa mundana, lucrativa, corriqueira, uma trabalho como qualquer outro é muito apavorante. E que essa prática fascista venha por intermédio dos veículos de comunicação! Fiquei realmente apavorada. E foi isso, aliás, que me fez recuar com relação à idéia de que havia realmente uma crise. O tempo todo queria entender qual era a crise, qual a causa, como ela funcionava, e corno resolvê-la. E a leitura dessa reportagem é que me fez perceber que não existe crise. Existem problemas graves, todos esses que discutimos aqui. Não se trata de recusar nenhum deles, mas a crise, sobretudo como ela é apresentada, não existe! Ela foi criada num momento que alguns julgaram interessante inventá-la (como eu disse no começo da entrevista). Um produto midiático que avassalou a sociedade brasileira. Que pôs em risco instituições. Que pôs em risco pes­soas. A sociedade brasileira precisa discutir isso aqui, pre­cisar ler, eu também vou planfetar isso, porque é decisivo! E outra coisa que também me impressionou demais é um artigo do Caio Túlio Costa que ele vai publicar na revista da USP, e que é a mudança sofrida pelos meios de comuni­cação sob a globalização e os efeitos da tecnologia digital. No caso da globalização, ele se baseia em levantamentos que foram feitos do processo de oligopolização. Os dados são muito impressionantes, em escala mundial os meios de comunicação estão reduzidos e caminharão nessa direção, e os que ainda não foram vão nessa direção, e estarão reduzidos à posse de seis conglomerados. Isso é um elemento que eu acho importante, é interessante porque não é muito o que ocupa o próprio Caio Túlio, mas a mim isso interessa porque a ideologia neoliberal da globalização é sempre liga­da à comemoração da dispersão, da fragmentação. O que ela chama de flexível, flexibilização, acumulação flexível de capital é a fragmentação e a dispersão. Que atinge direta­mente a classe trabalhadora. Porque no plano do capital o que você tem é a concentração jamais vista! Só que não pensei que a oligopolização tivesse atingido os meios de co­municação. Ainda achei que havia enclaves nacionais, por exemplo. Só que, quando junta a oligopolização e o que na sua reportagem você diz, Marina, não estamos mais diante de uma questão econômico-financeira, e nem mesmo no nível da manipulação.



José Arbex Jr. - É outra coisa.

É. Então é o pânico. E olha que sou marxista pra valer, que aposta na força das contradições sociais, políticas, elas demoram para fazer o trabalho delas. E até completarem o trabalho delas você faz um estrago... às vezes coisas irremediáveis. Então, a concentração da informação ligada ao modus operandi fascista dela é muito assustador. Esse é o primeiro aspecto que eu queria mencionar. Acho que no nosso caso o que se comprova é a construção do objeto “crise”, como se constrói o objeto Iraque, ou o objeto Islã, vai construindo os objetos. Bom, o segundo aspecto, e aí também vai nos dizer respeito, mas também tem um alcance maior, é a descrição que o Caio Túlio faz dos efeitos da tecnologia digital, dos multimídias, enfim, da globalização, da sociedade em rede. Porque ele analisa os efeitos disso sobre a comunicação. E, dos efeitos que ele aponta, três me deixaram muito impressionada. O primeiro diz o seguinte: como a quantidade de informação que passa a circular é excessiva, e nenhum comunicador, nenhum jornalista pode dominar essa quantidade de informação, o que ele precisa para aceitar uma informação e publicá-la? Precisa fazer a triagem e tem que recorrer a uma fonte. Uma. questão de meio ambiente, ele vai lá para o ecologista, ou seja, recorrer aos especialistas do ramo.  Isso significa que vai havendo uma perda informativa a cada passo no senguinte sentido: o especialista tem uma informação mais ampla e mais acurada que o jornalista. O repórter tem uma informação mais ampla e mais acurada do que o editor. O editor tem uma informação mais ampla e mais acurada do que o diretor. O diretor tem uma informação mais ampla e mais acurada do que o proprietário, que tem uma informação mais ampla e mais acurada do que o leitor. Então, nessa cadeia das falas autorizadas, vai havendo uma perda sucessiva da quantidade e da qualidade da informação, de tal modo que, quando chega ao leitor, ela é muito pequena. A segunda, que é próxima dessa, é que não só a quantidade da informação é muito grande, mas a velocidade dela. Então, o jornalista não tem como se manter enquanto jornalista se não acompanhar essa velocidade. E ele passa a trabalhar num ritmo veloz, fugaz, efêmero, e para fazer isso, como não dá tempo de conferir os dados de que dispõe, o que ele faz? Começa a falar muito pouco sobre o mundo e a emitir as suas próprias opiniões. Porque, se ele tiver que voltar atrás, é fácil, ele vai dizer “eu errei, eu me enganei, eu me equivoquei” ou “eu mudei de opinião”. Enquanto que, se o noticiado mesmo não for aquilo, ele cometeu uma falha enorme. Então, esse segundo caso complementa o primeiro, que é a diminuição outra vez na informação. Um processo efetivo de diminuição da informação sob a aparência de um aumento dela. E o terceiro aspecto - -ele aponta uns dez, mas os que me interessaram foram esses - é que a qualidade das fontes e a qualidade das informações e o que circula na rede não são homogêneos. Então, você tem informações verdadeiras e confiáveis, informações mais ou menos, informações pouco confiáveis, e informações falsas. E você não tem elementos para discernir. E combina um pouco de cada. E destrói outra vez a informação. Então, isso foi uma coisa também que me abalou porque, de alguma maneira, eu poderia analisar o que a mídia brasileira tem feito usando um desses dois parâmetros. Com um eu diria que há uma decisão, como a fonte conta na reportagem da Caros Amigos, de produzir uma crise. E com o outro eu posso dizer, bom, mesmo que tenha havido essa decisão, o que é enviado à população como substância da crise pode ser muitas vezes esse conjunto de informação de baixo teor, de informação contraditória e de informação falsa que o próprio meio fornece ao jornalista. Então me perguntei como é que vamos lidar com isso - e agora não estou pensando nessa nossa “crise” aqui nesse momento, estou pensando é o seguinte: o que se diz é que nós vivemos na sociedade em rede, que portanto o capital efetivo dessa sociedade é a informação. E ela é a sociedade do conhecimento porque o saber como informação é o principal capital ativo das empresas, e ele é a força produtiva principal. Ora, isso pressupõe uma certa concepção da informação que, vamos dizer, opera no nível econômico, no nível social, no nível político, no nível cultural, sem que você tenha a menor possibilidade de ter o controle dela. E, portanto, você pode estar operando num universo totalmente fictício e imaginário. E aí o controle é total. É interessante, porque em geral as pessoas dizem: “Vai haver uma democratização da informação. A rede democratiza a informação”. A impressão que eu tenho lendo esses trabalhos todos, sobretudo levando em conta que a rede não é propriedade coletiva, social, é propriedade privada sob a forma dos oligopólios, é, vamos dizer, a dimensão totalitária do processo no seu todo. De um lado, acho que se realiza aquilo que o Marx disse - vamos em um processo em que haverá só o fetiche, não vai sobrar realidade nenhuma. Tudo é fetiche e tudo é mediano pelo fetiche, acho que chegamos lá. E, por outro 1ado, estamos despreparados para enfrentar isso. Estou muito apreensiva, porque uma coisa é constatar, outra coisa é ver no interior dessa constatação quais são os elementos contraditórios que permitem que você atue sobre isso. E não estou vendo, por enquanto, não estou vendo.

Entrevista Publicada Originalmente na Revista Caros Amigos

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Última atualização em Qua, 25 de Outubro de 2006 17:01
 

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