Gilmar quer ser o Bonaparte de um Brasil ancorado em dinamite social. Por Saul Leblon |
Dando o que Falar | |||
Ter, 25 de Outubro de 2016 18:46 | |||
Gilmar Mendes dispensa apresentações. Mas seria injusto deixa-lo ao relento das simplificações subentendidas, ao risco de subestima-lo como uma simples toga a serviço do ódio a Lula e ao PT. Gilmar é mais que a caricatura que personifica. Mais que o antipetismo recoberto do manto escuro que no Brasil, nele sobretudo, deixou de simbolizar o Estado de Direito. Gilmar é a personificação da última instância do interesse patronal. Nele ecoa aquilo que a elite e o mercado –urbi et orbi-- gostariam que fosse o Estado, a Justiça, a Constituição, a Economia, a Política, o Sindicato, a Polícia, a Mídia e o Congresso nessa turbulenta era da desordem neoliberal. Ou seja, um mosaico passivo, subordinado a um ‘ permanente estado de exceção’. A definição do filósofo italiano, Giorgio Agamben, caracteriza um tempo em que capitalismo & crise tornaram-se uma entidade unívoca. E a adaptação às necessidades da sua sobrevivência, a regra no manejo do arsenal jurídico. Gilmar é a voz desse desejo sibilado, enquanto as mãos dedilham cifrões imaginários. Sua convicção antipopular o conduz à elevada condição de referência do bonapartismo togado com que sonham as classes patronais. Nos últimos dias e horas ele vem detalhando a sua concepção de país submetido a uma supremacia asfixiante do dinheiro sobre o destino da sociedade e a sorte do desenvolvimento. Nesta 2ª feira, na Folha, rechaçou dividir o posto de Bonaparte do condomínio do dinheiro com Moro e o Ministério Público de Janot ‘Lava Jato tem sido um grande instrumento de combate à corrupção. Ela colocou as entranhas do sistema político e econômico-financeiro à mostra, tornando imperativas uma série de reformas.Agora, daí a dizer que nós temos que canonizar todas as práticas ou decisões do juiz Moro e dos procuradores vai uma longa distância’. E rechaçou o decálogo anticorrupção que amplia os poderes do MP e da Janot: ‘Isso se tornou estratégia de grupos corporativos fortes para ter apoio da população.É uma esperteza midiática. Não tem nada a ver com a realidade. Os juízes todos estão agora engajados no combate à corrupção? São 18 mil Sergios Moros? Sabe?No fundo estão aproveitando-se oportunisticamente da Lava Jato’ A luta de facções, como se vê, instalou-se nas entranhas do golpe E Gilmar sabe que se ceder o manto de pretenso bonaparte do golpe, ele próprio e seus amigos tucanos poderão sucumbir. A presença de Gilmar em reuniões com FHC, Temer e mesmo com o ex-ministro de Dilma, José Eduardo Cardozo, alinha-se nessa ofensiva para deter um esgarçamento do tecido golpista. Mas, sem ilusões. O alvo prioritário de Gilmar continua a ser o desmonte do projeto de democracia social que Lula e o PT simbolizam no país. Isso ele deixou claro em quatro momentos sucessivos na semana passada. O personagem que acumula o posto de ministro mais influente da Suprema Corte, presidente do Superior Tribunal Eleitoral, porta-voz togado do conservadorismo, última instância do patronato e articulador permanente do golpe consumado em 31 de agosto, elencou assim suas prioridades ao atacar, pela ordem: - o Ministério Público que, no seu entender estaria usando a Lei de Ficha Limpa para coagir políticos, em ações de improbidade “incentivadas pelo lulopetismo", disse; o que pode, acusou, ‘ tornar gente do melhor quilate inelegível, como Serra, como Malan”, seus ex-colegas de governo FHC, enquanto “ladravazes estão soltos" (18/10); - no dia seguinte (19/10) divulgou-se que Gilmar Mendes revogara entendimento jurisprudencial da Justiça do Trabalho que estende cláusulas de acordo coletivo vigente, em caso de impasse nas negociações para renová-lo. Conquistas precedentes funcionam como uma barreira formal ao arrocho em momentos de destruição maciça do pleno emprego, como acontece agora no Brasil. Gilmar sabe disso. Sabe que para produzir o efeito no custo da hora trabalho, demissões épicas não podem ser mitigadas pela vigência de direitos e garantias legais que protejam as famílias assalariadas. Em sua decisão, ele alega que a ‘norma vigente só protege o trabalhador’. Explícito assim. Com a mesma transparência, defende que a CLT seja flexibilizada prevalencendo de agora em diante o negociado sobre o legislado. Algo como exigir a rendição incondicional dos sobreviventes na guerra aberta do capital contra o trabalho. - dois dia depois (21/10) em palestra promovida pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abidib) e pela Câmara Americana Comércio (Amcham), Gilmar Mendes voltaria ao ataque. “Esse tribunal (o TST) é formado por pessoas que poderiam integrar até um tribunal da antiga União Soviética. Salvo que lá não tinha tribunal”, ironizou, fazendo rir a plateia patronal. “[Eles têm] uma concepção de má vontade com o capital”, continuou, radicalizando o confronto. Os problemas, no seu entender, podem estar relacionados à própria composição do TST. "Talvez um certo aparelhamento da própria Justiça do Trabalho e do próprio TST por segmentos desse modelo sindical que se desenvolveu", concluiu deixando as marcas agressivas de um ataque mais abrangente do que parece . No Supremo, ele tem elogiado iniciativas do colega Teori Zavaski nesse direção. Na direção de desmontar a soberania da CLT na prática, em benfício do negociado sobre o legislado, para lubrificar projetos patronais congelados no Congresso, ressuscitados pelo golpe de 31 de agosto. - Na mesma sexta-feira (21/10), na sequência de sua fala na Câmara Americana, Mendes disparou contra o programa Bolsa Família, uma forma, noi seu entender, de fraudar a vigilância do TSE na ‘compra de sufrágios’. "Com o Bolsa Família, generalizado, querem um modelo de fidelização que pode levar à eternização no poder. A compra de voto agora é institucionalizada", fuzilou contra um dos alvos do desmonte intrínseco à PEC 241. A saraivada contra as leis e a ordem constitucional, nas últimas horas, não deve ser minimizada. Não é apenas um sinal de coerência de quem traz carimbado na testa um epíteto: onde quer que haja o interesse do capital revogue-se o do trabalho. Vai além disso a sulforosa maratona dos dias que correm. Seu ativismo reflete a crise em que se meteu a elite e o capitalismo brasileiros. Ao mergulhar o país na ilegitimidade de um golpe contra o povo, a ordem dominante perdeu a fonte original do poder que mediava inclusive as suas fricções. A falta de limites de Gilmar Mendes que empurra o Estado de Direito para o Estado de Exceção é parte dessa dissolução explosiva de fronteiras. Para onde nos leva o Brasil manejado pela conveniência jurídica do juiz do capital. E quando explodir,o que sobrará; melhor: quem negociará o caminho de volta? De onde virá o novo poder mediador se os partidos estão destruídos, o eleitor comprou a propaganda da rejeição à política e a ordem constitucional, já rasgada, estrebucha sob a pressão de toga desagregadora? Quais os limites, se os há; e quem irá fiscalizá-los? Quem diz, por exemplo, até onde pode ir em nome da ‘aplicação vigorosa da lei’, o imã do califado de Curitiba? O que fazer com o passado da nação? Esse que Gilmar pretende varrer, mas cujos atores perambulam ainda vivos pelo presente? Onde fica o povo no Brasil de Gilmar Mendes? E a Carta de 1988, a pobreza, a desigualdade, o desejo de emancipação, as organizações sociais, a CLT, os partidos, a liberdade de imprensa que o juiz Moro já tutela, as lideranças sociais, Lula... Quem prender? Quando prender, por que prender, o que extrair de quem prender --como extrair confissões e delações ? Como disciplinar os auto-ungidos guardiões da doutrina da fé do MP, que sentenciam o que deva ser a moralidade pública, ao mesmo tempo em que estilizam o juízo final em powerpoints bizarros? Como saciar milicianos do Estado Midiático, que agora cobram o paraíso dos livres mercados na terra em transe desmontada pelo golpismo? Como serão dirimidas as divergências entre facções no Brasil para o qual nos empurra Gilmar Mendes? O enfrentamento entre a Polícia Federal e a Polícia dos Senadores é um bala de morango perto disso que respira nas entranhas do golpe de 31 de agosto. Sinais de um estilhaçamento do poder e das instituições cavalgam da língua de Gilmar para o hímen complacente dos noticiosos que agora a tudo abonam. A inquietação da toga boquirrota expressa os intestinos enfezados desse frankstein parido a golpes, sabotagens, ganância, conspiração, ódio de classe, entreguismo e arbítrio É ostensivo o esforço para engata-lo o à única fonte de poder capaz, no seu entender, de impedir o estouro das partes: o fundamentalismo de Mercado. Ou o ‘Deus dinheiro’, como diz Agamben. Mas dentro do próprio dinheiro há conflitos e guerras que só podem ser refreados pela mediação originária da urna. Uma Líbia institucional, retalhada por milícias em confronto, ergue-se como um fantasma no horizonte do golpe. Nesse Termidor precoce, cada cabeça que tomba repete ao algoz o mesmo vaticínio proferido por Danton a caminho da guilhotina: ‘Tu me seguirás, Robespierre’ Ou não será isso que Cunha, o álibi de Moro para Lula, disse a Temer? O fato incontornável é que a sustentabilidade financeira do Estado desenhada pelo golpe é incompatível com a sua sustentabilidade democrática. Não podem os golpistas submeter sua agenda a uma constituinte, nem mesmo leva-la à urna plebiscitária. A escória parlamentar que a referenda não representa a assembleia da nação. Expostas à argumentação amplamente franqueada à crítica, medidas acenadas agora como fundamentais à regeneração da confiança dos mercados no país dificilmente seriam legitimadas pela sociedade. A PEC 241 mais se assemelha a uma intimação à eutanásia do que a um projeto de nação. Mais a um resgate tardio da bandeira desbotada de Thatcher --‘there is no alternative’— do que a um convite à participação. Não convence, mas não apenas porque as evidências engolfam as famílias assalariadas em uma lógica oposta, que Gilmar quer salgar com a desproteção ao trabalho quando ela é mais necessária. É pior ainda. O desmonte social brasileiro avança na direção oposta ao que o bom senso e a sobrevivência nacional recomendariam diante da desordem financeira global. A recessão construída, antes, pela sabotagem --o que não diminui a contribuição dos erros cometidos pelos governos petistas; e agora, com a PEC do arrocho, aprofunda a vulnerabilidade brasileira em relação a uma deriva global marcada pela sombra da estagnação secular. A retórica da ‘contração expansiva’ supõe a existência de um ciclo de investimento global receptivo a uma sociedade descarnada de vontade própria e pronta para o abate. Esse mundo não figura no acervo do capitalismo realmente existente. A exemplo do que ocorre com as empresas aqui –corroídas pelo descasamento entre o fluxo de caixa e custos de dívidas e investimentos de um fim de ciclo expansivo-- a realidade global vive gargalos sistêmicos ao investimento. As expectativas golpistas de uma precificação de apoio externo, na forma de um boom antecipado de investimentos não passam de propaganda midiática. O que se delineia é o oposto. Ao recuar as defesas da ação anticíclica do Estado, da proteção ao emprego e ao poder de compra real do salário, bem como esgarçar a rede de resistência à miséria e à fome, a economia brasileira engatou as suas fraquezas à prostração global. Estados endividados, baixo investimento público e privado, massas colossais de capital fictício, crescimento débil e comércio mundial anêmico compõem a realidade dessa fonte seca. Acrescente-se à longa estiagem a demanda espremida por elevadas taxas de desocupação, explosão do emprego precário, salários aviltados e endividamento paralisante das famílias. A dívida global mais que duplicou nos últimos 15 anos, segundo o FMI. A capacidade de geração de caixa das empresas, a demanda e o comércio mundial regrediram no mesmo período. O panorama nas economias emergentes não é menos desolador. As dívidas corporativas cresceram também em todos os países em desenvolvimento desde 2008. Passaram de uma média de 75% do PIB para 110% agora. No Brasil, segundo cálculos do economista Felipe Rezende, que tem alertado para o erro de diagnóstico do golpe --ao focar o gargalo da economia na esfera fiscal, quando as empresas estão em situação bem mais grave-- a geração de caixa das companhias abertas (com ações negociadas em Bolsa) não paga nem as despesas financeiras, A ilusão dos que aplaudem o anti-trabalhismo de Gilmar Mendes, como se a busca da mais-valia bruta fosse recuperar o pulso econômico de um mercado sem mercado, mostra-se portanto ideologicamente coerente com ele. Mas descabida para o desenvolvimento brasileiro. Não há como se repetir uma nova era Thatcher (1979 a 1990) feita de compressão salarial, repressão sindical e ‘des-emancipação social’ pelo simples fato de que o Estado do Bem Estar social já foi lixiviado lá fora e aqui nunca existiu. A beberagem que se quer enfiar goela abaixo da população brasileira, ademais da dimensão predadora, revela-se anacrônica e incompetente para reverter a dinâmica de crescimento da dívida pública e privada. A dívida federal cresce hoje impulsionada pelo peso mortal de taxas de juros reais de 6% ao ano, responsáveis por 80% da composição déficit fiscal, sendo ínfima a pressão exercida por novas despesas (leia a entrevista sempre brilhante de Luiz Gonzaga Belluzzo, nesta edição:http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Belluzzo-O-Brasil-esta-caindo-para-a-serie-C-do-campeonato-mundial-/7/37039) Sem crescimento, com receita tributária em marcha ré (queda de 10% em agosto e de 7% em setembro) ,o Brasil está sendo reduzido a uma montanha desordenada de ruínas. O horizonte fantasmagórico assusta. E a escalada de Gilmar Mendes adiciona um sustenido de horror ao túnel escuro da torpeza econômica. O conjunto não resistiria ao contraditório de uma agenda alternativa, crível e serena, de maior justiça tributária e retomada do investimento público, que falasse à angústia crescente em todos os extratos da sociedade. Uma agenda assim, capaz de aglutinar no seu entorno uma frente ampla de interesses sociais, carregaria o trunfo de oferecer à população aquilo que a estreiteza estratégica do golpe e o conflito desestabilizador de suas facções, sequer postula. Ou seja, uma repactuação da sociedade com ela mesma através de uma ampla negociação de um novo pacto pelo desenvolvimento brasileiro. É nesse ponto que a matraca togada entra em modo crepuscular e se recompõe a superlativa relevância de um líder com a projeção nacional e internacional e a capacidade de diálogo comprovada. Luís Inácio Lula da Silva. Prendê-lo, por certo, já foi uma ambição de maior consenso dentro do golpe. Embora seja o objeto de desejo conservador impedi-lo de figurar na cédula de 2018, hoje, mais que ontem e, por certo, menos que amanhã, um espectro ronda as cabeças menos entorpecidas da elite brasileira. Se o crescimento, como parece ser o caso, não for entregue no curto prazo; se a luta fratricida se radicalizar; se, como soa cada vez mais provável, a rua rugir o seu inconformismo com a dinamite social que Gilmar quer acender ... Se isso acontecer com Lula preso, quem vai negociar o caminho de volta aos trilhos da democracia social e do desenvolvimento? Dória Jr? Aécio? O ‘chanceler’ Serra? Moro? Dallagnol? Ou o procurador ‘Boquinha’? Na crise que se cultiva, quem ainda pode falar ao Brasil e ser ouvido pela elite e a rua? Quem? Artigo publicado originalmente na Carta Maior
|
Agenda |
Aldeia Nagô |
Capa |