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Os dias eram assim, sim. Por Alex Solnic
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Dando o que Falar
Qui, 27 de Abril de 2017 05:56

Alex_SolnikÀs 6 da manhã do dia 4 de setembro de 1973 eu fui acordado pela minha mãe, que estava de penhoir (ainda existe penhoir?) para atender um senhor que estava na porta dizendo ser pai de um amigo meu.

Desci as escadas de pijama reforçado (fazia frio) e chinelos de palha japoneses.

Nunca tinha visto aquele sujeito antes. Uns 40 anos, cabelos grisalhos, um elegante cachecol. “Meu filho saiu ontem com você e ainda não voltou” disse ele.

Eu não estava entendendo muito bem, mas resolvi ajudar.

“Quer que eu saia ou o senhor prefere entrar”? perguntei.

“Prefiro que você saia”, disse ele.

Logo no primeiro passo que eu dei pra fora da porta fui surpreendido por dois homens que saltaram na minha frente, um deles empunhando uma metralhadora.

“É você mesmo, seu filho da puta” disse o outro, enquanto me aplicava um soco no estômago. Eu não ofereci resistência, é claro. Não gritei, não falei, não perguntei.

Dois deles invadiram a casa dos meus pais – eu ainda morava com eles, aos 24 anos – e um terceiro me conduziu para a viatura C-14 marrom sem placas estacionada na esquina.

Em alguns minutos, os que invadiram a casa embarcaram na viatura mostrando para mim três publicações que justificariam minha prisão: “Maravilhas do conto russo”, uma coletânea de autores clássicos do se. 19; um exemplar da Revista da Civilização Brasileira com a matéria de capa “A Igreja e o regime militar” e uma edição do jornal do DCE-USP, então proscrito.

Antes de partirmos – eu de pijama e chinelos – colocaram um capuz sem furos na minha cabeça e mandaram que eu deitasse no vão entre os bancos dianteiro e traseiro.

No trajeto, um deles pronunciou uma frase que não esqueço até hoje:

“Hitler não completou o serviço que começou com vocês”.

Passei o primeiro dia sentado num banco do que parecia ser um saguão, de pijama e encapuçado. De vez em quando, sem mais nem menos, dois caras sentavam ao meu lado e me aplicavam socos onde lhes aprouvesse, inclusive na minha cabeça, além de puxar os pelos do meu peito.

Esperavam que eu reagisse para então me infligir sofrimentos piores, mas eu não abria a boca para reclamar.

Depois me levaram para o primeiro interrogatório. Meu interrogador estava à paisana. Logo avisou que se eu mentisse ia me aplicar os primeiros choques, nos dedos.

Apanhou a agenda de telefones apreendida no meu quarto e passou a exigir que eu explicasse quem eram as pessoas por trás dos nomes.

À noite, o que parecia ser o chefe mandou acompanhá-lo. No caminho falei pela primeira vez:

“Vocês se enganaram comigo. Eu não sou de grupo nenhum, não tenho nada a ver com isso”.

“Tem, sim” reabteu ele, sem levantar o tom de voz. “Você é o Hippie da A.P.”.

Eu até poderia ser confundido com um hippie, usava cabelos até os ombros, vasta barba, mas nunca tive esse apelido nem nunca fui da A.P., Ação Popular.

Ele me acompanhou até a cela X-5. No meio do cômodo de 9 metros quadrados um homem dormia em cima do colchão de capim.

O homem que me trouxe o acordou:

“Conhece esse cara”? perguntou ao preso.

Este apenas sacudiu o rosto para os lados.

Dormi a primeira noite no mesmo colchão, meus pés na altura da cabeça do encarcerado.

O que eu vi nos dias seguintes foram cenas de filme de terror.

Meu companheiro de cela, que estava preso há sete dias e se recusava a sequer dialogar com os torturadores era torturado dia sim, dia não.

Ele voltava severamente machucado sempre que era conduzido ao segundo andar, de onde vinham gritos lancinantes.

Enquanto as vítimas gritavam de dor, o volume do rádio era aumentado até o limite.

As seis celas – três de um lado do pátio e três do outro – estavam lotadas. Uma delas era a cela das mulheres.

Certo dia, um dos torturadores desceu à carceragem num estado de excitação tal que parecia que um exu tinha baixado nele. Vestindo uma toga ele se perfilou diante da cela feminina e começou a berrar para uma das presas frases chulas tais como:

“É hoje que nós vamos fritar os ovos do teu marido! Quer assistir”?

Quando me mandaram para a cela X-3, que ficava em frente à minha eu pensei que iam dedetizar a X-5, alguma coisa assim. Só quando voltei, no dia seguinte, meu companheiro de cela me contou que me mudaram de cela para eu não testemunhar a sua possível morte.

Ele tinha sido colocado, naquele dia, na Cadeira do Dragão. Nu, molhado, amarrado ao objeto de metal enfrentou, nas nove horas seguintes sessões de socos, pontapés, cusparadas e choques elétricos nas partes mais sensíveis do corpo, como na ponta do pênis, no saco escrotal, nos mamilos.

Só não morreu porque, quando sentiu que estava a ponto de romper os laços com a vida resolveu dizer o seu nome, rompendo o silêncio.

Tal como os nazistas que tentam até hoje falsificar a história, negando o Holocausto, os bolsonaristas, a versão tupiniquim dos integralistas de Plinio Salgado, todos fascistas, no fundo, tentam debochar da minissérie da Globo que retrata a barbárie da ditadura militar chamada “Os dias eram assim”.

Sem nenhuma acusação, sem que ninguém me tivesse delatado, sem nenhum indício de que eu pertencesse a grupos de luta armada ou desarmada ou tivesse participado de alguma ação classificada como “subversiva”, fiquei preso durante 45 dias nas dependências do II Exército que é onde ficava o DOI-Codi, na Rua Tutóia.

Os dias eram assim, sim.

Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/alex_solnik/292344/Os-dias-eram-assim-sim.htm

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