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Eu cresci no Brasil de Bolsonaro. Por Fábio Marton
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Dando o que Falar
Qua, 07 de Novembro de 2018 01:15

Fabio_MartonNunca fui petista. Na Era do Amor do primeiro mandato de Lula, lá estava eu criando um blog antipetista. Eu me arrependo de muita babaquice que escrevi, mas ainda me acho liberal em economia. E não pisquei em decidir por Haddad no segundo turno.

Eu tenho a mais profunda e visceral ojeriza por Bolsonaro e o que ele representa. É como se eu fosse um refugiado de um país totalitário e essa figura sebosa esteja prometendo trazer o horror em que cresci para o país em que me exilei. E vejo quem não viveu esse horror o subestimando.

Meu regime totalitário é o pentecostalismo. Com ou sem o neo, não faz diferença (demora pra explicar, tá no meu livro). Esse é meu comunismo, esse é meu fascismo — ainda que a palavra exata seja teocracia, como no Irã ou Arábia Saudita. É de onde me refugiei, e o que parece prestes a, se não dominar tudo, tornar-se parte central da ideologia do Estado brasileiro.

Na teocracia pentecostal, o que chamamos de discurso de ódio é só a linguagem do dia-a-dia, dos almoços em família. Para mim, Bolsonaro não tem nada de raro, exótico ou aberrante. Eu manjo a figura. Eu já vi antes e tenho visto desde criancinha. Ele não disse uma palavra que meu pai não teria dito.

O que vai a seguir é um retrato de quem, comprovadamente, pelas pesquisas, é o núcleo duro da base bolsonarista. São os que estão com ele por concordarem com o que diz. Quase tudo o que ele diz.

Fé demais

Meu pai é filho de um pastor da Assembleia de Deus. Na juventude, passou um tempo desviado, reencontrou a fé nos seus quase 40 anos, quando eu era criança. Na minha enorme família, dá pra contar nos dedos de uma mão quem não é pentecostal.

O velho votou em Lula em 2002. Os pastores disseram que era OK. Se arrependeu em 2006, virou virulentamente antipetista. Tirando exatamente os que não são crentes, a família está em bloco com Bolsonaro. A vida inteira, meu pai falou que era melhor na ditadura e defendeu pena de morte, que bandido bom é bandido morto, etc. etc. etc. Votava em Maluf. Quando eu o descrevia para outras pessoas, perguntavam se não era um militar. Era dono de uma oficina.

Anos atrás, em tempos que devem ficar na saudade, visitei a família com uma camisa cor-de-rosa e cachecol. O velho parece não ter concordado com meu senso de moda. Ouvi dele à mesa que “se tivesse filho gay, matava”. Eu não dou a mínima para ser chamado de gay. Se fosse, quem sabe o velho fosse mais humano, obrigado a lidar com isso (obviamente iria de Bolsonaro do mesmo jeito). Mas então retruquei: “Você acha que é cristão perseguir alguém por uma coisa que ele nem escolheu?”. E ele encerrou então com: “Quem é gay tá possuído pela Pomba-Gira” (mais adiante).

Crentes (os que conheci) não são exatamente supremacistas brancos. Em geral, acreditam que racismo existe, mas não no Brasil. Meu pai sempre fez piada de preto, e vivia falando em “baiano”. E, se tinha problema com um negro e particular, a culpa virava de todos. Mas, é claro, já frequentou igreja em que o pastor era negro — como poderia ser racista?

Quando era criança, ouvi o pastor dizer jocosamente que “negro é filho do Cão”. Cão (ou Cam) é um dos três filhos de Noé, amaldiçoado por caçoar de sua bebedeira (Gênesis 9:18). A pele escura seria uma maldição — essa ouvi bastante. Não sei se ainda dizem.

A parte mais racista na ideologia crente é o profundo ódio que destinam às religiões afro. São nada menos que os representantes de Satã na Terra. Quando falam em demônios, eles dão nomes do Candomblé: Pomba-Gira, Exu Caveira, Exu Tranca Ruas. Isso é absolutamente central na vida do crente, é parte do apelo, do espírito de guerra, de cruzada, que torna a coisa tão emocionante. Odiar Satã é odiar o candomblé. Eles provavelmente têm mais fé no trabalho deixado na esquina que quem o deixou - para eles, “macumba” sempre pega e só exorcismo cura. (Uma vez até comentei com o velho: “Você não é cristão, é politeísta. Você acha que deuses africanos são reais”. Não entendeu nada.)

Meu pai teve dois filhos. Então meu velho nunca disse o “fraquejei e tive filha”. Mas Bolsonaro nem de longe inventou isso. Vinte anos antes, eu já ouvia isso quase toda a vez que um crente se apresentava a outro, falando da família. Era um clichê, um “pavê ou pacumê” de crente.

Essa parte é um pouco paradoxal. Mulheres tem uma presença definitivamente maior nas igrejas pentecostais que na Católica. A maioria hoje admite pastoras. Mesmo as mais tradicionais sempre permitiram que as irmãs viessem ao púlpito para dar seu testemunho. E, ainda assim, misoginia é parte integral do pacote.

Nunca fui a um casamento na família sem ouvir "o homem é a cabeça da mulher" (Efésios 5:23) (ao que se segue “e Deus é a cabeça do homem”). Na igreja, o “só casando” é absoluto; na prática, a filosofia do velho era, cito: “segure suas cabritas que meu bode tá solto”. Ele próprio teve 7 esposas, inclusive algumas não oficiais. O pastor nunca falou nada. Ele pagava o dízimo em dia.

Quanto a mim, pude trazer namoradas para o quarto (elas não eram crentes; se fossem, teria sido diferente). Só reclamou uma vez, quando trouxe um amigo e uma amiga, todo mundo bêbado, e eles dormiram no chão. Ele ficou escandalizado com o suposto ménage. Mas reclamou mesmo é que a moça era feia.

Imagino como seria se eu fosse mulher. Uma prima minha foi pega num armário com um rapaz num retiro evangélico. Ouviu “puta” de todos os bons cristãos que, normalmente, usavam linguagem Sucker&Fucker, falando “ferrar” no lugar de foder. Inclusive seu pai, que a conduziu pra casa aos bofetões.

O pai dela, aliás, é o antagonista de meu livro: o Nadir. Um tio agregado santarrão que batia na mulher e filhas (meu pai nunca fez algo do gênero, isso tenho em favor dele). O resto da família detestava o cara, mas nunca tentou algo como uma denúncia. Sua esposa, irmã de meu pai, fugiu de volta para ele quando resgatada. Na igreja, nunca foi repreendido.

Jesus contra o Mundo

Eu fui criado num mundo de verdade alternativa. São criacionistas de Terra jovem, acham que o planeta surgiu há mais ou menos 7500 anos e dinossauros são animais pré-dilúvio.

Tudo no mundo se divide em coisas de Deus ou do Diabo, numa batalha encarnada não só em pensamentos e desejos, como também objetos. Coisas podem ter o Diabo nelas. Xuxa teria feito pacto com o Diabo (virtualmente todas as pessoas de sucesso que não são crentes fizeram). Então chiclete da Xuxa deixaria as crianças possuídas e, claro, virar disco ao contrário traz recadinhos de Satã. Fofão era “consagrado” ao Tinhoso e o boneco vinha com faca dentro (não sei se os crentes são a origem da lenda urbana ou só aderiram). Até a batata Pringles podia te contaminar capetice. (Esse é um caso de fake news de crente internacional, com origem conhecida: nos anos 90, funcionários da Amway, empresa de marketing multinível com donos evangélicos, passaram a espalhar que o executivo da Procter & Gamble havia se assumido satanista na televisão).

Crentes também não ouvem música “do mundo” (isto é, dos não crentes, os que estão irremediavelmente com o Demo). Toda música que não é gospel é do Coisa Ruim. A maioria dos filmes e livros, se tem algum conteúdo que soe “do mundo”, é proscrita — Harry Potter, falando em bruxaria de forma positiva, está na unha do Capeta e quem o ler vai acabar possuído. Seguidores de religiões afro e espíritas, já dissemos, são mais satanistas que disco do Black Sabbath tocado no reverso. Católicos também estão com o Diabo, pois “adoram a imagens de escultura” (Deuterunômio 5:8). Já ouvi muito (mas não é um consenso universal) que o Papa é o próprio Anticristo. Quando ouvia alguém usar a palavra “cristão”, queria dizer em primeiro lugar outros pentecostais, raramente outros protestantes. Jamais católicos. Por definição bíblica, “cristão” exclui os “adoradores de esculturas”.

A mídia como inimiga é coisa antiga. No mínimo, desde o incidente do chute na santa (de novo, “adoração de imagens de escultura”), em 1995. Ou todas as críticas à Igreja Universal. Como Edir Macedo foi pego contando dinheiro e nunca deu em nada. Toda crítica é conspiração do “mundo” e os jornalistas provavelmente estão possuídos pelo Exu Trinca Bolas ou algo do tipo.

E chegamos ponto mais central: política. A visão pregada nas igrejas é um tipo de absolutismo teocrático.

Razão crítica é o Diabo falando em sua orelha (eu literalmente imaginava isso quando comecei a duvidar). Meu pai ia numa igreja (neopentecostal) cujo líder era um óbvio picareta. Andava de BMW e falava que sua prosperidade era uma bênção de Deus, que podia ser também sua. Quando eu perguntava por que não viam o óbvio, que ele era um ladrão, respondiam: “A gente tem a obrigação com Deus de seguir o pastor e dar o dízimo. Se o pastor estiver roubando, é algo entre ele e Deus”. Não é muito mistério quem ensinou isso ao rebanho.

Em algum ponto anos 90, assisti a uma pregação em uma Igreja do Evangelho Quadrangular. O pastor falou sobre a ordem do mundo: “criança obedece à mãe, a mãe ao pai, o pai ao chefe, o chefe ao patrão, o patrão ao presidente. Porque Deus, que não deixa uma folha cair da árvore sem sua permissão, foi quem colocou todos em suas posições”.

Aos 15 anos, já achei que isso parecia fascismo. Há uma mensagem profundamente antiliberal (no sentido político, não econômico), martelada a cada pregação, de aniquilação da individualidade, de submissão ao divino e seus representantes, de demonização de quem está fora e de guerra, com metáforas militares cravadas nos hinos, contra o Inimigo, o Diabo. Neste momento, o Inimigo é encarnado pelo mesmo PT que os pastores recomendaram em 2002. Ao pentecostal, não existe neutro: ou é de Deus ou do Diabo.

Deixei de seguir muita gente nas redes sociais, mas continuei acompanhando o que minha família postava. Eles são meu ponto de contato com o mundo bolsonarista nesta eleição. Um dia antes do primeiro turno, uma prima compartilhou uma montagem falando literalmente que no dia seguinte começaria o governo de Deus na Terra.

Brasilsão de Deus

Não estou dizendo que todos os pentecostais pensam como o que descrevi. Sei sobre ao menos um caso de um pastor perseguido por não apoiar Bolsonaro. Existem figuras como Marina Silva — uma pentecostal que tenta equilibrar certo conservadorismo nos costumes com uma pauta progressista (e enfrenta muitas críticas por isso). As pesquisas de voto não dão 100% a Bolsonaro entre pentecostais, ainda que sejam o grupo mais pró-Bolsonaro de todos.

Meu ponto é que o fenômeno da teocracia pentecostal existe. E que o núcleo duro de Bolsonaro não é o fascismo de suspensório e coturno, mas a teocracia de terno ensebado e testa suada, berrando ao microfone. Fascistas são uma gangue. São milhares. Teocratas, um país. Milhões. O ódio aos gays e à cultura negra, a misoginia, o espírito militarista de cruzada, de caça às bruxas, a visão anticientífica do mundo, a desconfiança total da mídia, e, por fim, o autoritarismo teocrático, tudo isso vem sendo pregado há décadas nas igrejas. Para quem vê de fora, a gritaria, entrecortada por música ruim, línguas estranhas e pedição de dinheiro, dá um ar folclórico à coisa. Encobre o fato de haver uma mensagem sendo passada ali muito mais perigosa que “ame Jesus, pague o dízimo”. O Diabo, o inimigo, sempre foi identificado foi com tudo que não é de crente. Agora, o Diabo são os petistas.

Assista ao nosso documentário 'O Mito de Bolsonaro':


A gente não está diante de um Mussolini nem um Hitler. Sequer um Castelo Branco. Mas lembra um general Franco ou os aiatolás do Irã. Bolsonaro é levado ao poder por um nacionalismo teocrático, o “Deus acima de todos”. E pode esperar a lei contra “cristofobia”, proibindo um texto como este. Deve ser uma das primeiras pautas – mesmo na remotíssima chance dele perder, aliás. Sua bancada deve propor.

Bolsonaro se diz católico. Ele se batizou na (pentecostal) Assembleia de Deus em 2016, o que implica a rejeição da fé original. Ou ele mentiu ao se batizar, ou mente agora. Talvez nem fé ele tenha. Talvez ele seja um crápula cínico também nesse ponto. Mas é o candidato oficial do autêntico pensamento teocrático evangélico brasileiro. Que manteve acesa a chama do mais radical, virulento e tapado reacionarismo brasileiro enquanto todo mundo só prestava atenção na sacolinha de dinheiro.

As pessoas ficam procurando o ovo da sucuri em festinhas Oi! no ABC, na irrisória alt-right tupiniquim, na velharada malufista e na playboyzada machista do cacete. Esses aderiram. A anaconda enroscada no Brasil e partindo suas costelas nasceu na igreja da esquina.

Fábio Marton é jornalista, autor de Ímpio: O Evangelho de um Ateu, em traz as memórias de sua criação fervorosamente pentecostal, sua desconversão na adolescência e os sérios conflitos com a família que se seguiram.

Artigo publicado originalmente em

https://www.vice.com/pt_br/article/wj993m/eu-cresci-no-brasil-de-bolsonaro?fbclid=IwAR1TrVcDsvKl0-gNsF9AIOVHISsO6sK4hGZ4jUyDjeOWERy4E4A4psXGxPw

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