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O choque das civilizações revisitado. Por Pepe Escobar
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Dando o que Falar
Qua, 22 de Julho de 2020 05:49

Pepe_EscobarNo fim da tarde de 20 de maio de 1453, o Sultão Mehmet, terceiro filho de Murad, nascido no harém, de uma escrava - provavelmente cristã -, fluente em turco, árabe, grego, latim, persa e hebraico, e acompanhado por seus principais ministros, seus imãs e sua guarda pessoal de janízaros, cavalga lentamente em direção à Grande Igreja de Santa Sofia, em Constantinopla.

É pouco provável que o Sultão Mehmet tenha, por um momento sequer, pensado no Imperador Justiniano, o último de uma notável linhagem: um verdadeiro Imperador Romano no trono de Bizâncio, que falava grego "bárbaro" (ele era nativo da Macedônia) embora possuísse uma mente latina.

Tal como o Sultão Mehmet, Justiniano era um geopolítico notável. O comércio de Bizâncio direcionava-se para Catai e as Índias: seda, especiarias, pedras preciosas. Mas a Pérsia controlava todas as trilhas de caravanas da Antiga Rota da Seda. A rota marítima também era problemática porque todas as cargas tinham que partir do Golfo Pérsico.

Justiniano, portanto, tinha que contornar a Pérsia.

Para tal ele criou uma estratégia bifurcada: uma rota setentrional passando pela Crimeia e pelo Cáucaso e uma rota meridional seguindo pelo Mar Vermelho, contornando o Golfo Pérsico.

A primeira foi um relativo sucesso, a segunda, um fracasso. Mas Justiniano por fim teve sua chance quando um grupo de monges ortodoxos se ofereceu para trazer da Ásia alguns preciosos ovos de bicho-da-seda. Não demorou muito para que surgissem fábricas não apenas em Constantinopla, mas também em Antióquia, Tiro e Beirute. A indústria imperial da seda - monopólio estatal, é claro - funcionava a pleno vapor.

Um mosaico fantástico do ano 546, situado em Ravena, mostra um Justiniano muito mais jovem que os 64 anos que ele tinha à época. Ele era um prodígio de energia - e trabalhou sem cessar no embelezamento de Constantinopla. O ápice foi a Igreja de Santa Sofia, que por séculos foi o maior edifício do mundo.

Então, temos aqui o Sultão Mehmet prosseguindo silenciosamente em sua lenta cavalgada até as grandes portas de bronze de Santa Sofia.

Ele desmonta, apanha um punhado de terra e, em um gesto de humildade, o derrama sobre seu turbante.

Ele então entra na Grande Igreja. Ele caminha até o altar. Uma ordem quase imperceptível faz com que seu principal imã suba até o púlpito e proclame, em nome de Alá, o Todo Misericordioso e Todo Compassivo, que não há Deus que não Alá, e que Maomé é o seu profeta.

O sultão, então, toca o chão com a cabeça enturbantada, em prece silenciosa. Santa Sofia, agora, era uma mesquita.

O Sultão Mehmet sai da mesquita, atravessa a praça e chega ao velho Palácio dos Imperadores, agora em ruínas, fundado por Constantino o Grande, onze séculos e meio antes. Ele vaga lentamente pelos antigos salões, suas sapatilhas de fino veludo roçando a poeira dos fabulosos pisos de mosaicos.

Ele então murmura os versos de um poeta persa:

"Enquanto a aranha tece o véu sobre o palácio dos Césares Romanos

A coruja canta o tempo da casa de Afrasiab".

O império bizantino, fundado por Constantino o Grande  em uma segunda-feira, 11 de maio de 330, chegou ao fim na terça-feira, 29 de maio de 1453.

O Sultão Mehmet é agora o Senhor de Constantinopla e Senhor do Império Otomano. Ele tem apenas 21 anos de idade.

De volta à Montanha Mágica

Na semana passada, o Presidente turco Recep Tayyip Erdogan rebatizou Hagia Sophia, que deixou de ser um museu para voltar a ser uma mesquita. Talvez ele o tenha feito porque sua popularidade está minguando, suas guerras por procuração são um desastre, seu partido, o AKP, está destroçado e a economia está sangrando gravemente.

Mas o que chama a atenção é que, logo ao início de sua fala oficial televisionada, Erdogan citou exatamente os mesmos versos do poeta persa murmurados pelo Sultão Mehmet naquela tarde fatídica de 1453.

A última jogada de Erdogan - parte de seu perene plano de reivindicar a liderança do mundo islâmico em detrimento da decrépita Casa de Saud - foi amplamente interpretada como mais um exemplo do choque de civilizações: não apenas Cristianismo Ortodoxo versus Islã mas, mais uma vez, Oriente versus Ocidente.

Isso me fez lembrar de uma outra derivação recente da questão Oriente versus Ocidente: uma reencenação do debate Settembrini versus Naphta no A Montanha Mágica, de Thomas Mann, promovida por um think tank holandês, o Nexus Institute, cujo objetivo é "manter vivo o espírito do humanismo europeu". Esse debate opôs Aleksander Dugin a Bernard-Henri Levy (amplamente conhecido na França como BHL). A transcrição completa do debate pode ser encontrada aqui.

Dugin é um eurasianista de primeira linha e autor do conceito - em grande parte banido no Ocidente - de  A Quarta Teoria Política. Como filósofo e teórico político, Dugin é caricaturalmente demonizado em todo o Ocidente como o "o cérebro de Putin", um fascista não-assumido e "o filósofo mais perigoso do mundo".

BHL, aclamado como "um dos principais intelectuais do Ocidente", é um poseur vaidoso que apareceu como um "nouveau philosophe" em meados dos anos 70, e que regurgita ritualmente os mantras atlanticistas de costume, envoltos em citações floreadas.  Ele conseguiu, entre outras façanhas, escrever um livro sobre o Paquistão sem saber absolutamente nada sobre o Paquistão, como acusei no Asia Times, em 2002.

Aqui vão alguns pontos interessantes do debate.

Dugin enfatiza o fim da hegemonia ocidental e do liberalismo global. Ele pergunta diretamente a BHL, como, "de forma bem interessante, em seu livro, você define o império americano ou o sistema liberal global como um sistema de niilismo, baseado em nada". Dugin define a si próprio como um niilista, "no sentido de que eu rejeito a universalidade dos valores modernos ocidentais (…)  Eu apenas contesto que a única forma de interpretar a democracia seja como a predominância das minorias contra a maioria, que a única maneira de interpretar a liberdade seja como liberdade individual, e a única maneira de interpretar os direitos humanos seja a de projetar uma versão moderna, ocidental e individualista do que significa ser humano em outras culturas".

BHL, que parece não ter lido seu próprio e tenebroso livro - isso é algo que Dugin me disse pessoalmente no ano passado, em Beirute, após o debate - prefere recorrer a um proverbial e infantil vitupério contra Putin, repetido vez após outra na insistência de que "Há um vento maligno e sombrio de niilismo no sentido correto, que é um sentido nazista e um sentido fascista, soprando na Grande Rússia".

Mais adiante no debate, BHL acrescenta, "Realmente acredito que exista um elo entre, por um lado, sua maneira de pensar e a de Huntington e, por outro lado, a ocupação da Crimeia, as trinta mil mortes da Ucrânia e a guerra da Síria, com seu trágico e horrendo  banho de sangue".

Quanto ao racismo, Dugin é inflexível: ele não o defende. Para ele, "O racismo é uma construção liberal anglo-saxônica baseada na hierarquia entre os povos. Vejo isso como criminoso". Ele então define uma nova divisão maniqueísta, um novo racismo. Os que são a favor dos valores ocidentais são bons. Todos os que questionam esses valores, na tradição islâmica, na tradição russa, na tradição chinesa, na tradição indiana, por toda parte, são populistas e são classificados como fascistas. Creio que essa seja uma nova forma de racismo".

BHL prefere se concentrar na "civilização dos direitos humanos, da liberdade, da dignidade individual e assim por diante. Isso merece ser universalizado. Isso deve ser concebido, salvo se você for racista, como lucrativo para toda a humanidade". E então, volta à cena, mais uma vez, o antissemitismo: "Todos os homens que você citou e em quem você se inspira - Spengler, Heidegger, que é também um grande filósofo, é claro, e outros - são contaminados, corrompidos, infectados por essa praga que é o antissemitismo. E, ai de mim! - você também é".

Nos círculos parisienses, corre a piada de que a única coisa com que BHL se importa é a promoção de BHL. E todos os que não concordam com um dos "principais intelectuais do Ocidente" são antissemitas.

BHL insiste que está interessando na construção de pontes. Mas é Dugin que expressa o verdadeiro cerne da questão: "Quando tentamos construir pontes cedo demais, sem conhecer a estrutura do Outro - o problema é o Outro. O Ocidente não entende o Outro como algo positivo. Eles são todos a mesma coisa e nós, imediatamente, tentamos encontrar pontes – que são ilusões e não pontes, porque estamos projetando a nós mesmos. O Outro é o mesmo, a ideologia do mesmo. Primeiro temos que entender a alteridade".

BHL ignora totalmente Levi-Strauss. É Dugin que se refere a Levi-Strauss quando fala do Outro, descrevendo-o como um de seus mestres: "Esse pluralismo antropológico, eu concordo, é precisamente a tradição americana e francesa. Mas ela não se reflete na política, ou se reflete de maneira muito perversa. Penso então que exista uma grande contradição entre esse pensamento antropológico das universidades americanas e das universidades francesas e um tipo muito agressivo de forma colonial neo-imperialista que visa a promover os interesses americanos em escala mundial usando de armas".

BHL se vê reduzido - ao que mais poderia ser? - à demonização de Putin: "O imperialismo real, o que realmente vem interferindo e semeando desordem e se imiscuindo em questões alheias, ai de mim!, é Putin. E não preciso falar da América, onde agora ficou provado que houve uma enorme, crua e evidente intervenção russa no processo eleitoral nas últimas eleições". BHL, que nem sequer se qualifica como um neófito em geopolítica, ignora totalmente a absoluta desmoralização do Russiagate.

BHL é peremptório: "hoje há um real choque de civilizações. Mas não o que você menciona em seus livros, entre norte e leste e oeste e sul, e coisas assim; há um choque de civilizações em todo o planeta entre os que creem em direitos humanos, em liberdade, no direito de um corpo não ser torturado e martirizado, e aqueles que se contentam com o iliberalismo e o restabelecimento do autoritarismo e da escravidão".

O desafio de Dugin vem, há anos, sendo a tentativa de conceituar o que poderá vir em seguida, após o fracasso do marxismo, do fascismo e da democracia liberal. Por mais que ele pense em termos de Eurásia, ele é inclusivo - incorporando o "Euro" e a "Ásia". BHL, por seu lado, reduz simplisticamente todos os "males" ao "iliberalismo", onde Rússia, China, Irã e Turquia - sem nuances - são jogados na mesma lata de lixo, juntamente com a vácua e efetivamente assassina Casa de Saud.

A volta de Mao

Tentemos agora dar um final bem-humorado a nosso mini-tríptico sobre o choque das civilizações. É inevitável que isso tenha a ver com a Guerra Híbrida Estados Unidos-China atualmente em curso.

Há cerca de dois anos, o seguinte diálogo fez um estrondoso sucesso na Weibo chinesa. O Grande Timoneiro Mao Zedong – ou seu fantasma – estava de volta e queria saber sobre tudo o que estava rolando. Pode-se chamar isso de uma versão realpolitik - revisionista? - do choque das civilizações.

Mao:  "O povo tem o suficiente para comer?"

Resposta: "Eles têm tanto para comer que estão fazendo dietas para emagrecer".

Mao: "Ainda existem capitalistas?"

Resposta: "Eles estão fazendo negócios no estrangeiro, agora!"

Mao: "Nós produzimos mais aço que a Inglaterra?"

Resposta: "A Tangshan, sozinha, produz mais que a América".

Mao: "Nós vencemos o imperialismo social (a antiga URSS)?

Resposta: "Eles se auto-dissolveram!"

Mao: "Nós esmagamos o imperialismo?

Resposta: "Nós somos o imperialismo, agora!".

Mao: "E quanto à minha Revolução Cultural?"

Resposta: "Ela agora está acontecendo na América".

Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres


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