O rato de loteria Por Zuggi Almeida |
Qua, 16 de Janeiro de 2019 07:28 |
Ele era uma espécie de 'rattus in lotteria”. Isso, Raimundinho era um rato de loteria, um viciado crônico nos jogos de azar: quina, sena, lotomania, bicho, rifa, bingo e os escambaus.
As associações eram inevitáveis diante dos fatos que ocorriam. Poderia ser uma colisão no trânsito e logo, o registro seguinte dos números das placas dos veículos sinistrados. O nascimento do filho de uma celebridade e estava aí a oportunidade de ser criado um milhar combinando a hora e os minutos exatos que a criança veio ao mundo. Raimundinho dividia um quarto e sala com Sofia, sua esposa, também pensionista do INSS. A aposentadoria de dois salários mínimos recebidos por Raimundinho associados à pensão mensal da mulher davam apenas para cobrir as despesas com alimentação, água, luz, transporte, etc. A outra metade do benefício , Raimundo Teodoro investia nos jogos de azar. O casal compartilhava um quarto e sala num prédio de paredes descascadas e pouca iluminação no centro da cidade de Salvador. Alí dividiam a comida barata, a indiferença e o pouco sexo praticado pelos dois. Acordar e cumprir a rotina do banho, café, depois vestir um terno surrado e despedir-se com um bom dia cuspido para Sofia. Raimundinho partia para fazer buscas nas latas de lixo das lojas de loterias. Alí ansiava por encontrar pequenos tesouros escondidos em volantes de apostas mal conferidos pelos clientes. Como um rato em busca de queijo, ele procurava esses pequenos pedaços de papel que podem oferecer certas vezes fortunas de algumas centenas de reais. Em casa, a senhora esguia de mãos e dedos longos ficava tecendo uma interminável toalha de croché. Era o mundo onde mergulhava todos os dias à cata de lembranças do marido falecido há milhares de quilômetros de casa. Um ataque cardíaco fulminante matou o caminhoneiro quando fazia o abastecimento da carreta num posto de combustíveis na divisa do estado de São Paulo com o Paraná. Estava acostumada a ausências e Raimundinho era só um complemento para o vazio da casa e do coração. Chegou a gerar uma expectativa para ter um orgasmo inédito, mas, o substituto de marido tinha apenas uma prazer na vida: apostas. Mal sabendo ela, que tinha dado uma grata satisfação quando o apostador acertou a dezena do macaco 65, no milhar na cabeça. Era o aniversário de Sofia e naquele dia ganhou como presente um bolinho com velinhas. A mulher achou estranho e preferiu guardar na geladeira a oferta de Raimundinho. Do encontro no setor de aposentados da previdência até o convívio comum no prédio úmido e cheirando a mofo passaram -se três anos de poucas conversas, tristezas e vazios. 1790 era o milhar que lhe causava obsessão mantido guardado no cofre da memória e conforme havia sido sinalizado no sonho, haveria uma mudança drástica na sua vida. O apostador continuava sua saga no universo das possibilidades, acreditando que a sorte apenas sorrir pra quem arrisca e só comparece uma única vez. Sempre apostando as mesmas dezenas para os concursos da megasena ou da quina, Raimundinho cumpria seu dia de trabalho metódico, sempre almoçando após saber o resultado do sorteio do jogo do bicho das 12 horas. À tarde repetia as mesmas apostas, aguardava o sorteio das quinze horas, investia nos que ocorriam à noite e recolhia-se para casa impreterivelmente às seis da tarde. Num desses dias chegou e encontrou Sofia debruçada sobre a mesa, a toalha de croché caída no chão, chamou pela mulher e não obteve resposta. Sofia foi enterrada num cemitério popular numa cova comum, presentes Raimundinho, os dois coveiros e uma amiga da falecida. Tinha o olhar fixo na cruz que o operário fincou sobre a terra que cobriu o caixão, nesse momento retirou do bolso uma caderneta e anotou um milhar. Eram 11 horas e ainda dava tempo para arriscar no jogo de meio dia. Passados seis meses da morte da companheira e Raimundinho acorda ansioso no dia do próprio aniversário, havia sonhado com 1790, o milhar mágico e fruto da combinação de macaco com urso. Levantou, tomou um banho sem pressa, bebeu um pouco de café, colocou o terno de cotovelos puídos e foi em direção a porta. Procurou pelas chaves no bolso e não encontrou. Voltou ao quarto, olhou sobre a cômoda, em cima e em baixo da cama. Nada. Começou a ficar angustiado e vasculhou todo o pequeno apartamento em vão. Onde estaria a chave de Sofia? Também, não sabia. Nunca se interessou por esse detalhe. O tempo passando. Decide arrombar a porta às oito e quarenta e cinco e parte em direção a banca do jogo. Tenta acelerar o passo, mas, a cardiopatia que lhe gerou a aposentadoria, também o impede de andar mais rápido. Chega ao paseio do outro lado da rua da banca do jogo às oito e cinquenta e cinco. O sinal está fechado para os pedestres. Um freio. Um baque surdo. O suspiro derradeiro. A poça de sangue dá um colorido ao asfalto. A placa vermelha do caminhão causador da tragédia exibe a combinação JKS 1790. * zuggi almeida é baiano, escritor e roteirista. |
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