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Notas e Digressões de Além-Poesia . Por Rilton Primo
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Seg, 02 de Setembro de 2019 02:09

Rilton-Primo1 CONTRACULTURA   

Quem domina enquanto classe, necessariamente fixa “a aparência de que as ideias dominantes não são as ideias da classe dominante e têm um poder diferente do poder desta classe.”[i]

 

A própria racionalidade pode ocultar uma motivação não necessariamente coerente consigo mesma, externa a si mesma, sobre-determinante do sistema em que a faz funcionar de forma lógica, de modo que

 

[...] os argumentos aparentemente racionais podem ser o mero reflexo de uma racionalidade heterônoma, imposta pelo todo social. Os participantes do processo comunicativo julgam estar agindo autonomamente e agem segundo as evidências do senso comum hegemônico, difundido pelos aparelhos culturais. A tese de que mesmo nas sociedades mais avançadas existem ainda brechas de racionalidade não sistêmica pode corresponder a um otimismo não justificado pelos fatos[ii].

 

Nesta agressiva economia das trocas simbólicas entram não apenas os meios internacionais de comunicação de massa (mass media), seus atacadistas nacionais e distribuidores regionais, os macro-aparelhos de produção simbólica dos Estados, nem apenas as igrejas, academias, agências, mas seus varejistas de esquina, o bilontra marqueteiro, o pastor suburbano, o poeta corre-chapéu. Toda geração tem orgulho de produzir seus fanqueiros e parasitas literários, e os exporta![iii]

 

O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência. Procurem os caracteres sérios abafar esse estado no estado que compromete a sua posição e o seu futuro.[iv]

 

Autoconsciências estacam ante os bookmakers e ghost writeres[v].

 

Há uma literatura que ninguém tem, que talvez nem tenha sido produzida, que se oferece ao estrangeiro, não em volumes, mas nas figuras de cidadãos bem educados, que falam com perfeição línguas difíceis e sabem frequentar embaixadas. Há outra, suada, ainda bem fraquinha, mas enfim uma coisa real, arranjada não se sabe como por indivíduos bastante ordinários. A primeira comparece a sessões solenes e manifesta-se em discurso; a segunda atrapalha-se e mete os pés pelas mãos na presença de gente de cerimônia e só desembucha no papel. A literatura honorária, escorada e oficial, vive sempre lá fora, chega aqui de passagem e quando aparece, é vista de longe, rolando em automóvel; a literatura efetiva, mal vestida e de segunda classe, mora no interior ou vegeta aqui, no subúrbio, e viaja a bonde, às vezes de pingente. Está errado tudo. Por que é que essas duas instituições, que não têm parentesco e usam o mesmo nome, não entram na combinação? Já que a primeira, constituída pelos patrões, é bem alimentada e não produz, e a segunda, a da gentinha, trabalha com a barriga colada ao espinhaço, podiam entender-se. A primeira daria um salário (ou ordenado, que é o nome decente) à segunda, e esta faria livros que, com alguns consertos na ortografia e na sintaxe poderiam ser assinados por ministro, conselheiro, desembargador e outros letrados deste gênero. [vi]

 

E mais:

 

O catálogo explícito e implícito, esotérico e exotérico do proibido e do tolerado não se limita a circunscrever um setor livre, mas o domina e controla de cima a baixo. Até os mínimos detalhes são modelados segundo sua receita. A indústria cultural, mediante suas proibições, fixa positivamente – [...] – uma linguagem sua, com uma sintaxe e um léxico próprios. A necessidade permanente de efeitos novos, que, todavia, permanecem ligados ao velho esquema, só faz acrescentar, como regra supletiva, a autoridade do que já foi transmitido, ao qual cada efeito particular desejaria esquivar-se. Tudo o que surge é submetido a um estigma tão profundo que, por fim, nada aparece que já não traga antecipadamente as marcas do jargão sabido, e, à primeira vista, não se demonstre aprovado e reconhecido. [...]. A indústria cultural por fim absolutiza a imitação. Reduzida a puro estilo, trai o seu segredo: a obediência à hierarquia social. A barbárie estética realiza hoje a ameaça que pesa sobre as criações espirituais desde o dia em que foram colecionadas e neutralizadas como cultura. Falar de cultura foi sempre contra a cultura.[vii]

 

O hic et nunc do verso estaria condenado à mudez cega, não fosse rebelde por natureza, oblíquo, indiscreto por vocação, oposto ao prosaísmo e dadá dos benifrates secretos das elites, estes quase-eunucos da própria voz, que Chico Buarque denunciou como a do dono. O verso é lascívia primal, invade os territórios privatizados da beleza e autoconsciência, age aos solavancos nos fios dos novelos dos impérios, ó carpas hodiernas.

 

2 INCONSCIENTE DESARMADO

 

Mas quantos estão a ponto de se ressentir de fatos relativos a to be, or not to be? Não é já sem número os integrados ao desarme de costumes, do gosto, da crítica? Um efeito colateral desta compostura é a impostura desesperada dos apocalípiticos a termos d’Umberto Eco:

 

Para o integrado, não existe o problema de essa cultura sair de baixo ou vir de cima para os consumidores indefesos. Mesmo porque, se os apocalípticos sobrevivem confeccionando teorias sobre a decadência, os integrados raramente teorizam e assim, mais facilmente, operam, produzem, emitem as suas mensagens cotidianamente a todos os níveis. [...] No fundo, o apocalíptico consola o leitor porque lhe permite entrever, sob o derrocar da catástrofe[viii], a existência de uma comunidade de 'super-homens', capazes de se elevarem, nem que seja apenas através da recusa, acima da banalidade média."[ix]

A poesia não é apocalíptica ou integrada, é uma arma.

 

Tratar-se-ia, portanto, de estabelecer de que maneira a estrutura das relações econômicas pode, ao determinar as condições e as posições dos sujeitos sociais, determinar a estrutura das relações simbólicas que se organizam nos termos de uma lógica irredutível à lógica das relações econômicas.[x]

 

Chega a tanto esta dissimulação que a poesia fica não só não-econômica, não-política, é esteticamente desligada das necessidades naturais de que nascera de início[xi], em uma espécie de transcendentalidade representacional existente por si mesma, afônica, desumana[xii], reificada no verbocentrismo cinza e abstrato.

 

A teoria da reificação (aqui fortemente recoberta com a análise da racionalização, de Max Weber) descreve o modo pelo qual, sob o capitalismo, as formas tradicionais mais antigas da atividade humana são instrumentalmente reorganizadas ou ‘taylorizadas’, analiticamente fragmentadas e reconstruídas, segundo vários modelos racionais de eficiência e essencialmente reestruturadas com base em uma diferenciação entre meios e fins. [...]. A força da aplicação dessa ideia a obras de arte pode ser medida em contraste com a definição da arte na filosofia estética tradicional (em particular em Kant) como uma ‘finalidade sem um fim’, isto é, uma atividade orientada a uma meta que, não obstante, carece de propósito ou fim prático no ‘mundo real’ dos negócios, da política, ou da práxis humana concreta em geral[xiii].

 

Porém, o que na primeiras camadas da infra-estrutura é a maquinização do corpo, nas últimas da superestrutura geram-se os “inconscientes maquínicos” apontados por Deleuze e Guatari, no encalço de W. Reich. Esta inversão gera um simulacro de arbítrio falseado. No limite, a poesia perde a consciência de suas bases materiais e se desconhece enquanto natureza, julgando-se autônoma do próprio contexto folclórico-cultural de que é parte e com o qual já não flerta e quase não dialoga, gerando um paradoxo filosófico, de quando “a razão perde os seus alicerces: não há bases reais para uma razão dialética.”[xiv] Excesso de instrumentalização do inconsciente vertido em estropiação de palavra até o verso inútil e consciente disto.

 

As belas letras, e as belas artes em geral, pendulam em quase toda parte até o ponto de absorver-se livremente em imaginações, sonhar ser "algo diferente da consciência da praxis existente, representar realmente algo sem representar algo real; desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo"[xv].

 

As representações que estes indivíduos elaboram são [inicialmente] representações a respeito de sua relação com a natureza, ou sobre as suas mútuas relações, ou a respeito de sua própria natureza. É evidente que, em todos estes casos, estas representações são a expressão consciente - real ou ilusória - de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção, de seu intercâmbio, de sua organização política e social. A suposição oposta é apenas possível quando se pressupõe fora do espírito de indivíduos reais, materialmente condicionados, um outro espírito à parte. Se a expressão consciente das relações reais destes indivíduos é ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isso é consequência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais limitadas que daí resultaram.[xvi]

 

Mas se a poesia é parte constitutiva do real, sua parte sígnica obviamente "pertence a este mundo e estabelece o seu complemento, embora seja apenas seu complemento ideal." [xvii] Não obstante, por autônomas, contraditórias, mutuamente excludentes, suas representações se fazem figurar apartando, isolando representador e representado, representações e homem, que já não se compreende, e já não as compreende: eis o sintoma.[xviii]

 

3 LIRA ESQUIZÓIDE

 

Processo de amplo espectro histórico, eis a Babel, a implosão cultural das linguagens. Demarque-se o fato no tempo, numa inflexão antediluviana da análise. Era moderna: Era das revoluções da divisão social, técnica e simbólica do homem. Era de grandes conquistas e aquisições, na base destas divisões: Divide et impera.

 

Quando, entretanto, era preciso

que o existente fosse compreendido inteiramente

Procurou-se por leis que o explicassem

A fim de que se tornasse claro, como e de que maneira

Aquilo que existia havia chegado a ser tal como era.

Quando, porém, o existente foi entendido, e as leis

Foram desvendadas e expressas em palavras,

Ficou claro que todo o entendimento era ainda insuficiente.

Não deixava de ser importante, contudo,

ver como o existente havia chegado a ser como era.

[...].

Quando, porém a humanidade, em seu constante progresso,

Chegava no estado preconizado pelos clássicos

Em que cada progresso e cada novo invento

Levavam os homens a uma desumanização sempre maior[xix],

Também a linguagem passou a degenerar rapidamente,

Impossibilitando qualquer entendimento.[xx]

 

Vê-se aqui e alhures como a problemática cultural alça à epistemológica, rebate-se nas línguas e as decepa. No seu Dialética e Hermenêutica, também J. Habermas atribuíra precisamente a uma tal fragmentação cultural das linguagens entre si e em si mesmas, uma qual necessidade de especialização em sua análise ou, inversamente, a uma tal necessidade, a condição de existência legítima destes juízos especializados:

 

A hermenêutica [...] só se torna necessária quando relevantes setores do mundo da vida ficam problemáticos, quando certezas do fundo culturalmente ensaiado se rompem e os meios normais de comunicação falham.[xxi]

 

Em meio à profusão de tantas teorias e discursos cuja semelhanças representacionais da forma são simulacros das dessemelhanças de conteúdo, fazem falta os cientistas das linguagens, discursos formais, sígnicos e paroles, semiólogos, hermeneutas, exegetas, E. Betti, M. Heidegger, Hans-Georg Gadamer, J. Habermas, A. Lorenzer, Hans Jörg Sandkuhler e Paul Ricoeur etc.

 

As pulsões nascem das suas matrizes cromossômicas, por isto não-taylorizadas e são capazes de desencadear transformações sociais “indesejadas”, de produção de revoluções culturais e políticas coerentes a si, para si. Daí que o inconsciente tenha sido visto como uma potência subversiva politicamente estruturante, perigosa máquina desejante, que produtora de vontades iconoclastas, incendiárias, pelo é como que invertido, se necessário à força, em um máquina de produção de vontades dóceis, extraviadas de seus reais objetivos[xxii].

 

E esta descoberta do inconsciente produtivo tem dois correlatos: de um lado, a confrontação direta entre essa produção desejante e a produção social, entre as formações sintomatológicas e as formações coletivas, ao mesmo tempo sua identidade de natureza e sua diferença de regime; por outro lado, a repressão que a máquina social exerce sobre as máquinas desejantes, e a relação do recalcamento com essa repressão. [...]. Toda produção desejante é esmagada, submetidas às exigências da representação, aos mornos jogos do representante e do representado na representação. O inconsciente produtivo é substituído por um inconsciente que só sabe se exprimir - exprimir-se no mito, na tragédia, no sonho.[xxiii]

 

O divide et impera esconde-se por traz de uma fisionomia binomial bastante conhecida: pão e circo; estímulo e resposta; vigiar e punir. Liberdade a ferros. Coação externa e interna, condicionamento micropolítico de comportamentos verbais e a-verbais.

 

Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos cujo papel é conjurar os poderes e perigos desse discurso, dominar seu advento aleatório, afastar sua pesada e temível materialidade.[xxiv]

 

O anímico é o último bárbaro, a ser também anexado e feito cidadão do império. Se o divide é condicionador da parte, o impera é condicionador do todo. A coesão política exige do poeta firmar as ideias que se quer firmadas, as com instinto capitulado, não-organizado, recalcada a onipotência dialética, aquela de Prometeu acorrentado e de sua libertação rebelde por Hércules, sem rendição ao deus-pai, e de estéticas que a nutram.

 

Nas sociedades com elevada unificação material e política e, consequentemente, com elevada concen-tração e unificação simbólica, o papel de encobrimento e dissimulação das relações de força cabe às diversas instâncias internas ao campo cultural. Nestes casos, pode ocorrer que o corpo de sacerdotes profissionais venha a ocupar posição de relevo no sistema de poder, passando então a proteger a ordem sagrada (e por seu intermédio, seus próprios interesses), assim como, em sociedades como a nossa, a universidade prepara quadros de 'funcionários da ideologia' dispostos a produzir os discursos condizentes com os interesses dos grupos detentores do poder. [...]. O que está em jogo no campo simbólico é, em última análise, o poder propriamente político, muito embora não existam puras relações de força a não ser mediatizadas por sistemas simbólicos que, ao mesmo tempo, tornam-nas visíveis e irreconhecíveis, pois lhe conferem uma existência através de linguagens especiais encobrindo as condições objetivas e as bases materiais em que tal poder se funda.[xxv]

 

A reação é ladina ao ponto de remunerar os que respondem pela identificação das relações entre cada posicionamento mental dos indivíduos e seu comportamento e, daí, pela identificação daquelas com determinados comportamentos de interesse estratégico e com determinados comportamentos políticos, numa política do comportamento, via investigações psicosociológicas, as da epistemologia crítica, as do materialismo histórico, etc.

 

Assim, a psicologia natural científica e a caracterologia têm uma tarefa bem definida: tem de observar os meios e os mecanismos através dos quais a entidade social dos homens se transforma em estrutura psíquica e, dessa maneira, também em ideologia. A produção social de ideologias deve se diferenciada, portanto, da sua reprodução nos homens de qualquer sociedade. Investigar aquela é tarefa da sociologia e da economia, verificar esta será a tarefa da psicanálise. A psicanálise tem de pesquisar em que medida a existência material imediata [...], portanto a maneira de viver e a satisfação das necessidades, mas também a chamada superestrutura social, quer dizer, a moral, as leis e as instituições, afetam a natureza instintiva do ser humano; tem de determinar, o mais exatamente possível, os inúmeros laços intermédios através dos quais se processa a transformação da 'base material' em ‘estrutura ideológica'.[xxvi]

 

O campo contra-revolucionário é inda o da revolução. K. Marx não achou necessário repetir esta obviedade.  Assim como a denegação é uma reafirmação pelo não. S. Freud todavia denunciou muito tal truque psíquico. Para recalcar poderes do cérebro oprimem-se corpos.

 

Em lugar das macro-instituições e dos macropoderes - particularmente o Estado[xxvii] - haveria discursos do poder como estratégias disciplinadoras de dimensão microfísica e capilar, sem qualquer relação de classe, e cujo lócus de exercício seria o corpo humano.[xxviii]

 

Remetendo-se à noção daquilo que aparece inclusive ausente de “centro narrativo e significativo”, reportando-se à “noção de micropoderes invisíveis desprovidos de centro”, M. Chauí chega à noção mais ampla de uma interdição crítica, censura invisível mas física. Tais fantasmas estão bem aqui e aconselham encerremos a discussão agora mesmo, deixando algumas questões abertas, enquanto fixam-se em nosso caráter.

 

No contexto mais lato da questão com respeito à função sociológica da formação do caráter, temos que focar a nossa atenção num fato que, embora seja bem conhecido, é mal compreendido nos seus pormenores, nomeadamente o de que certas estruturas humanas médias derivam de determinadas organizações sociais, ou, para dizer de outro modo, cada organização social produz as estruturas de caráter de que necessita para existir. Na sociedade de classes, a classe governante assegura o seu domínio com o auxílio da educação e da instituição da família, tornando suas ideologias as ideologias dominantes de todos os membros da sociedade. Contudo, não se trata apenas de implantar as ideologias em todos os membros da sociedade. Não se trata de atitudes doutrinais e de opiniões, mas de um processo radical em cada nova geração dessa sociedade, cujo fim é modificar e modelar estruturas psíquicas em todas as camadas da população. [...]. Desde que a sociedade se dividiu em possuidores dos meios de produção e possuidores da mercadoria denominada energia de produção [força de trabalho], toda a ordem social passou a ser estabelecida pelos primeiros, pelo menos independentemente da vontade e da inteligência dos últimos, e, na verdade, quase sempre contra a vontade deles. À medida que esta ordem social vai moldando as estruturas psíquicas de todos os membros da sociedade, ela reproduz-se nos homens. [...]. É nesta fixação de caráter da ordem social que se encontra a explicação da tolerância com que as camadas reprimidas da população encaram o domínio de uma camada social superior, que dispõe dos meios do poder, tolerância essa que por vezes vai ao ponto de defender a repressão autoritária contra os interesses delas próprias, camadas sociais reprimidas. [...]. Pode demonstrar-se que, ao mesmo tempo que a fixação de uma ordem social, que impede completa ou parcialmente a satisfação das necessidades, começam a desenvolver-se as pré-condições psíquicas, que minam esta fixação na estrutura do caráter. Com o tempo aparece uma clivagem cada vez maior entre a renúncia forçada e a crescente tensão das necessidades; esta clivagem acentua-se ao mesmo tempo que se desenvolve o processo social e tem um efeito desintegrador sobre a ‘tradição’; constitui o âmago psicológico do aparecimento de atitudes mentais que minam aquela fixação.[xxix]

 

4 DO MONOCÓRDIO EU

 

Mudando de assunto, alguém aqui teve uma ideia fixa? A ideia fixa, em si mesma, poderia ser definida como um complexo de resistências, uma cidadela do psiquismo. Demovê-la não é tarefa sem resistência interna e externa; há transferência analítica e contratransferência. Para a antiguidade o hábito era a “segunda natureza”. Modernamente, condicionamentos interiorizados, recalques, pulsões e couraça, cesura e desejo imbricados.

 

Uma sequência de pensamentos como essa pode ser descrita como hiperintensa, ou melhor, reforçada ou hipervalente (‘uberwertig’) na acepção de Wernicke. Ela mostra seu caráter patológico, a despeito do conteúdo aparentemente correto, pela peculiaridade singular de que, por mais que sejam os esforços de pensamentos conscientes e voluntários da pessoa, não se pode dissipá-la ou eliminá-la. Uma sequência normal de pensamentos, por mais intensa que seja, acaba podendo ser eliminada. [...]. Ora, que fazer diante de tal pensamento hipervalente, depois de se tomar conhecimento de sua fundamentação consciente, bem como dos protestos ineficazes feitos contra ele? Diz-se que essa sequência hiperintensa de pensamentos deve seu reforço ao inconsciente. Ela é impossível de resolver pelo trabalho do pensamento, seja porque suas raízes chegam até o material inconsciente, recalcado, seja porque outro pensamento inconsciente se oculta por trás dela. Este último é, na maioria das vezes, seu oposto direto. Os opostos sempre estão estritamente interligados e, muitas vezes, separam-se em duplas de tal maneira, que um pensamento é consciente com hiperintensidade enquanto sua contrapartida é reprimida e inconsciente. Essa relação entre os dois pensamentos é um efeito do processo de recalcamento. Com efeito, a repressão muitas vezes se efetua por meio de um reforço excessivo do oposto do pensamento a ser recalcado. A esse processo chamo reforço reativo, e designo por pensamento reativo o pensamento que se afirma na consciência com hiperintensidade e que, à maneira de um preconceito, mostra-se indestrutível. Os dois pensamentos comportam-se então entre si como as duas agulhas de um galvanômetro estático. O pensamento reativo mantém o pensamento objetável sob recalcamento por meio de um certo excesso de intensidade, mas, em vista disso, ele próprio fica ‘amortecido’ e invulnerável aos esforços conscientes do pensamento. Portanto, a maneira de retirar o reforço do pensamento hiperintensificado consiste em tornar consciente seu oposto reprimido.[xxx]

 

Neurótica ou psicótica ou não, a ideia fixa tem tudo para resistir à análise, à situação da análise, raciocina. Esse não é o problema teórico central, mas o prático.

 

Se as ideias fixas não fossem as ideias fixas dominadoras, não fossem as ideias fixas da dominação fixa, não fossem as ideias da fixidez da dominação, ela deixaria de ser a ideia típica daquele que é dominado e, desde Hegel, também do que o domina. A fixidez do domínio foi denunciada resposta usual aos estímulos dúplices das ideias fixo-dominadoras: sado-maso, senhor-escravo. O homem perde tanto, metido a ferros, que os estima. Rousseau denunciava-o nestes termos e foi detratado.

 

Uma ideia fixa é uma verruma. Vai-se enterrando de ano para ano. Para extirpá-la no primeiro ano é preciso arrancar os cabelos; no segundo rasga-se a pele; no terceiro ano quebra o osso; no quarto saem os miolos.[xxxi]

 

Em igualmente acurado termo:

 

Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa. Antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a ideia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna loureira. Por exemplo, Seutônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório, - ou ‘uma abóbora’ como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que os dois césares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o ‘abóbora’ de Sêneca. E tu, madame Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio. Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tornando à ideia fixa, direi que é ela que faz os varões fortes e os doidos; a ideia móbil, vaga ou furtiva é a que faz os Cláudios, - formula Seutônio. Era fixa a minha ideia, fixa como... não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa [...]. Lá iremos. [...]. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado. Vamos lá retifique o seu nariz, [...]. Deixemos a história com seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou na batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão de Augsburgo.[xxxii]

 

Ligar o domínio micropolítico interno das ideias fixadas ao macropolítico externamente estruturado e intruso no caráter... é a essência da economia semiótica.

 

A análise micropolítica se situaria exatamente no cruzamento entre esses diferentes modos de apreensão de uma problemática. É claro que os modos não são apenas dois: sempre haverá uma multiplicidade, pois não existe uma subjetividade de um lado e, do outro, a realidade social material. Sempre haverá ‘n’ processos de subjetivação, que flutuam constantemente segundo os dados, segundo a composição dos agenciamentos, segundo os momentos que vão e vêm. E é nesses agenciamentos que convém apreciar o que são articulações entre os diferentes níveis de relação de forças [...]. A questão micropolítica é a de como reproduzimos (ou não) os modos de subjetividade dominante.[xxxiii]

 

A ideia fixa tem seus tremores, abalos sísmicos. Cede ao novo a meio do processo de sua sedimentação histórica às “camadas geológicas” do psiquismo e a memória, nela, enfim também se esvai, ou quase. Convém lembrar, S. Freud se sentia um paleontólogo. Se as idades do pensamento, paradigmas de classe, podem ser longevos, são como tudo: merecem perecer.



[i] MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 73. “As ideias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as ideias de sua dominação.” (Id., Ibid).

[ii] ROUANET, S. Razão Negativa e Razão Comunicativa. In. ROUANET, S. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 346.

[iii]A imprensa é a mesa do parasita literário; senta-se a ela com toda a sem-cerímônia; come e distribui pratos com o sangue frio mais alemão deste mundo — diante da paciência pública — que vacila sobre os seus eixos.” ASSIS, Machado. O Parasita Literário. In. ANDRADE, Ana Luiza. Transportes Pelo Olhar de Machado de Assis: Passagens entre o Livro e o Jornal. Chapecó: Grifos, 1999.

[iv] ASSIS, Machado de. Os Fanqueiros Literários. In. ANDRADE, Ana Luiza. Transportes Pelo Olhar de Machado de Assis: Passagens entre o Livro e o Jornal. Chapecó: Grifos, 1999.

[v]Então atinei que o hotel Zakariás de Budapeste hospedava o encontro anual de autores anônimos. [...]. Havia meia dúzia de intérpretes instalados com seus equipamentos na última fila, onde também me acomodei para não perturbar a sessão. [...]. Aí o público irrompeu numa ovação, seguida de fartas risadas depois que o Sr.... declinou o nome do suposto autor, Hidegkuti István, e relacionou os prêmios literários concedidos ao célebre contista. [...] [O Sr....] pegou a ler trechos de seus romances, ensaios, peças de dramaturgia, obras atribuídas a autores os mais heterogêneos, e que entre eles não houvesse um poeta me tranquilizou. Quase afônico, concluiu sua apresentação com um apanhado de generosas críticas daquelas mesmas obras, que publicara na imprensa com a assinatura do venerando professor Buzanszky Zoltán, levando a plateia a aclamá-lo de pé. [...]. Retesou-se, porém, assim que anunciei os Tercetos Secretos, poema de minha autoria outorgado ao emérito Kocsis Ferenc, com prefácio do venerando professor Buzanszky Zoltán. Eu tencionava ler, mas não li o prefácio, um autêntico Buzanszky, cujo estilo tão superior ao seu poderia humilhar o Sr.... — Preferi humilhá-lo com a poesia, arte que ele ignorava, e que o faria sofrer muito mais por não saber onde lhe doía. Eu declamava os versos lentamente, havia palavras que eu quase soletrava, pelo prazer de vê-lo se remexer na cadeira. Eu fazia longas pausas, silêncios que só um poeta se permite, e ele baixava o rosto, olhava para os lados, para seus montes de livros, chegou a juntar os livros no colo, fez menção de se retirar. Mas eu estava a cavaleiro, com meus tercetos na ponta da língua, eu estava declamando a Apoteose dos Poetas e sabia que ele quedaria sentado até o fim.” HOLANDA, Chico Buarque de. Budapeste. São Paulo: Shwarcz, 2003. p. 142-145.

[vi]  Cf. RAMOS, Graciliano. Linhas Tortas (Obra Póstuma). São Paulo: Livraria Martins Editora, sd.

[vii] HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Indústria Cultural: O Iluminismo como Mistificação de Massas. In. LIMA, L. (Org.). Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 176-179.

[viii] "A cultura de massa é a anticultura." ECO, U. Opus citatum. "Os centros burgueses de guerra psicológica tratam de elevar ao máximo a eficácia do uso dos meios de comunicação de massas. Há centros de investigação especializados no estudo dos processos informativos para revelar recursos ocultos que possibilitem incrementar a eficiência da informação. Em trabalhos do professor Michael Choukas (EUA), conotado especialista em guerra psicológica, se afirma que para obter êxito com as informações é imprescindível observar algumas condições: operatividade, máxima carga emocional, determinação exata do destinatário, combinação do efeito psicológico com a máxima atualidade da notícia. [...]. Especulam com o fato de que o indivíduo mediocremente informado pode perder-se no mar de notícias diárias. Tal indivíduo é incapaz de discernir a verdade da mentira, o importante do trivial, o tendencioso do franco." Cf. VOLKOGANOV, D. Guerra Psicológica. Moscou: Progresso, 1986. p. 133-134.

[ix] "O apocalíptico é uma obsessão do dissenter, a integração é a realidade concreta dos que não dissentem. [...]. Mas até que ponto não nos encontramos ante duas faces de um mesmo problema, e não representarão esses textos apocalípticos o mais sofisticado produto oferecido ao consumo de massa? Então a fórmula 'Apocalípticos e Integrados' não sugeriria a oposição entre duas atitudes (e os dois termos não teriam valor substantivo), mas a predicação de adjetivos complementares adaptáveis a esses mesmos produtores de uma 'crítica popular da cultura popular'. [...]. No limite, a comunidade reduzidíssima - e eleita - de quem escreve e de quem lê, 'nós dois, você e eu, os únicos que compreendem, e estão salvos: os únicos que não são massa'. Dissemos 'super-homens' pensando na origem nietzschiana (ou pseudonietzschiana) de muitas dessas atitudes. Mas dissemo-lo com malícia, pensando na malícia com que Gramsci insinuava que o modelo do super-homem nietzschiano poderia ser individuado nos heróis de folhetim oitocentista, no Conde de Monte Cristo, em Athos, em Rofolfo de Geroldstein ou (concessão generosa) em VautrIn. Se a comparação parecer peregrina, reflitamos sobre o fato de que sempre foi típico da cultura de massa o fazer cintilar aos olhos de seus leitores, dos quais exige uma disciplinada 'mediedade', a possibilidade de que ainda - dadas as condições existentes, e mesmo graças a elas - possa um dia florir da crisálida de cada um de nós um Uebermensch. O preço a pagar é que esse Uebermensch se ocupe de uma infinidade de pequenos problemas, mas mantenha a ordem fundamental das coisas: é o pequeno vício reformista do Rodolfo dos Mistérios de Paris, fato de que se deram conta não apenas Marx e Engels mas também - contemporaneamente a eles - Belinski e Poe, em duas apreciações que parecem estranhamente decalcadas sobre a polêmica da Sagrada Família. Num dos ensaios que se seguem, estudaremos um Super-homem típico da cultura de massa contemporânea, o Superman das estórias em quadrinhos: e parece-nos poder concluir que esse herói superdotado usa das suas vertiginosas possibilidades operativas para realizar um ideal de absoluta passividade, renunciando a todo projeto que não tenha sido previamente homologado pelos cadastros do bom senso oficial, tornando-se o exemplo de uma proba consciência ética desprovida de toda dimensão política: o Superman jamais estacionará seu carro em local proibido, e nunca fará uma revolução." Ibidem.

[x] BOURDIEU, P. Condição de Classe e Posição de Classe. In. BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 25. “Uma vez que as ideias dominantes tenham sido separadas dos indivíduos dominantes e, principalmente, das relações que nascem de uma dada fase do modo de produção, e que com isso chegue-se ao resultado de que na história as ideias sempre dominam, é muito fácil abstrair dessas ideias ‘a ideia’ etc. como o dominante na história e nesta medida conceber todos estes conceitos e ideias particulares como ‘autodeterminação’ do conceito que se desenvolve na história. É então também natural que todas as relações dos homens podem ser deduzidas do conceito de homem, do homem representado, da essência do homem, do homem. Assim procedeu a filosofia especulativa. O próprio Hegel confessa no final da Filosofia da História que ‘só considera o progresso do conceito’ e que expõe na história a ‘verdadeira teodicéia’.”. MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 74-77. Cf. HABERMAS, J. Mudanças Estruturais da Esfera Pública: Investigações Quanto a uma Categoria da Sociedade Burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

[xi] “A produção de ideias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens ativos e reais, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico.” MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 37. Embora a poesia seja essencialmente humana, “a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais.” Tese VI Sobre Feuerbach. Cf. MARX, K. Teses Sobre Feuerbach. In. MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 13. Cf. LABICA, G. As ‘Teses Sobre Feuerbach’ de Karl Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

[xii] Cf. ORTEGA Y GASSET, José. La deshumanización del arte. In. ORTEGA Y GASSET, José. Obras Completas. 2ª. ed. Tomo III. Madrid: Alianza Editorial, 1993.

[xiii]  Cf. JAMESON, Fredric. Reificação e utopia na cultura de massa. Disponível em: www.unicamp.br/cemarx/criticamar-xista/CM_1.2.pdf. Acesso: 1 jan. 2011.

[xiv] ROUANET, S. Razão Negativa e Razão Comunicativa. In. ROUANET, S. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 340.

[xv] MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 45. “Detenhamo-nos, sem embargo, por um momento na religião, por ser este o campo que mais afastado e mais desligado parece estar da vida material. A religião nasceu, em uma época primitiva, das ideias confusas, selváticas, que os homens formavam acerca de sua própria natureza e da natureza exterior que os rodeava. Porém toda ideologia, uma vez surgida, se desenvolve em conexão com o material de ideias dado, desenvolvendo-o e transformando-o por sua vez; de outro modo não seria uma ideologia, isto é, um trabalho sobre ideias concebidas como entidades com sua própria substantividade, com um desenvolvimento independente e submetida tão só a leis próprias. Estes homens ignoram forçosamente que as condições materiais, em cuja cabeça se desenvolve este processo ideológico, são as que determinam, em última instância, a marcha de tal processo, pois se não o ignorassem, se haveria acabado todo o caráter ideológico de seu pensamento.” Cf. MARX, K.; ENGELS, F.; Lênin, V. Antologia del Materialismo Histórico. México: Ediciones de Cultura Popular, 1979. p. 176.

[xvi] MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 36n.

[xvii] MARX, K. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In. MARX, K. Manuscritos Econômicos e Filosóficos: Texto Integral. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 52.

[xviii] “A representação territorial comporta essas três instâncias, o representante recalcado, a representação recalcante, o representante deslocado”. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, sd. p. 211.

[xix] O poeta refere-se aqui, presumivelmente, a John Stuart Mill, em sua monumental Principles of Political Economy, ponto culminante da Economia Política Clássica Inglesa do ponto de vista teórico, e, por certo, o mais dramático do ponto de vista político. Mill inseriu-se na histórica crítica do pensamento econômico entre “aqueles que ainda zelavam por sua reputação científica e não queriam passar por meros sofistas e sicofantas das classes dominantes”, conforme Marx. Mais especificamente, o poeta provavelmente refere-se a uma passagem da obra de Mill, citada no capítulo XIII de O Capital intitulado A Maquinaria e a Indústria Moderna, qual seja: “É duvidoso que as invenções mecânicas feitas até agora tenham aliviado a labuta diária de algum ser humano.” Confissão tardia da economia política burguesa diante da qual Marx ainda retorquiria: “Mil deveria ter dito: De algum ser humano que não viva do trabalho alheio. As máquinas aumentaram certamente o número dos abastados ociosos.” Cf. MARX, K. O Capital - O Processo de Produção do Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Difel, 1987. p. 423. Explica Marx ali mesmo: “Não é esse o objetivo do capital, quando emprega a maquinaria. Esse emprego, como qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, tem por fim baratear as mercadorias, encurtar a parte do dia de trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo [o salário], para ampliar a outra parte que ele dá gratuitamente ao capitalista [o lucro]. A maquinaria é meio para produzir mais valia.” Ibidem.

[xx] BRECHT, B. Poemas Didáticos Sobre a Natureza dos Homens. In. PLUM, W. Ciências Naturais e Técnica a Caminho da ‘Revolução Industrial’: Aspectos Sociais e Culturais da Industrialização. Bonn: Friedrich-Ebert-Stiftung, 1979. p. 130.

[xxi] Cf. HABERMAS, J. Dialética e Hermenêutica: Para a Crítica da Hermenêutica de Gadamer. Porto Alegre: L&PM, 1987.

[xxii] Cf. GUATTARI, Félix. O Inconsciente Maquínico. Ensaios de Esquizo-Análise. Campinas: Editora Papirus, 1988.

[xxiii] DELEUZE, G & GUATTARI, F. op. cit. p. 74-75.

[xxiv] Cf. FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2007. Título Original: Lórdre du Discours. Leçon Inalgurale au Collège de France prononcée le 2 décembre 1970.

[xxv] MICELI, S. A Força do Sentido. In. BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. LV.

[xxvi] REICH, W. op. cit. p. 15.

[xxvii] “A ideologia da classe dominante não se torna dominante por obra e graça divina, nem mesmo pela virtude da simples tomada do poder de Estado. É pela instauração (mise en place) dos Aparelhos Ideológicos do Estado, em que esta ideologia é realizada e se realiza, que ela torna dominante. Ora esta instauração não se faz por si, é pelo contrário o centro, o alvo de uma duríssima e ininterrupta luta de classe”. Cf. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa: Biblioteca de Ciências Humanas, s.d. p. 118. Cf. MANDEL, Ernest. Os Estudantes, os Intelectuais e a Luta de Classe. Escritos Políticos 2. Lisboa: Antídoto, 1979.

[xxviii] Cf. CHAUÍ, M. Público, Privado, Despotismo. In. NOVAES, A. (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. pp. 345-390.

[xxix] REICH, W. Análise do Caráter. Lisboa: Dom Quixote, 1979. p. 14-16.

[xxx] FREUD, S. Fragmento da Análise de um Caso de Histeria. In. FREUD, S. Obras Psicológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 221. “São estas mesmas forças que, por meio dos agentes normais, alimentam as neuroses; no tratamento analítico manifestam-se como ‘resistências’ à eliminação da repressão. Este conhecimento teórico determina uma outra regra da prática: o tornar consciente o inconsciente, não diretamente, mas quebrando resistências. Isto é, o doente tem de compreender, primeiro, que está a resistir; depois, porque meios; e, por fim, contra o que. A este tratamento chama-se ‘interpretação’; consiste ou em desvendar as expressões veladas do inconsciente, ou em estabelecer as relação que se tinham separado através das repressões. Os desejos e receios inconscientes reprimidos procuram constantemente alívio, ou, mais precisamente, contato com pessoas e situações reais. O motor mais importante deste comportamento é a insatisfação da libido do doente; daí o ter de esperar que ele associe também as suas exigências e temores inconscientes com o próprio analista e a situação analítica. Daí resulta outrossim a ‘transferência’, isto é, o estabelecimento de relações com o analista que se traduzem por manifestações de ódio, amor ou angústia. Mas estas atitudes, que se produzem de novo na análise, são apenas repetições de atitudes mais antigas, na maioria infantis, em relação com pessoas que, na infância do doente, tiveram para ele, em determinada altura, significado especial. O doente contudo não tem consciência desse significado. Estas transferências devem ser tratadas sobretudo como tais, isto é, ser ‘resolvidas’ descobrindo as suas relações com a infância. Visto que todas as neuroses, sem exceção, se formam a partir de conflitos da infância antes do quarto ano de idade, conflitos que, por seu lado, não podiam ser tratados, mas revivem na transferência, a análise da transferência, em conjunto com a dissolução das resistência, constitui a parte mais importante do trabalho analítico. Além disso, como o doente, na transferência, umas vezes tenta suplantar o trabalho esclarecedor da análise, satisfazendo as antigas exigências de amor ou os antigos impulsos de ódio que permaneceram insatisfeitos, outras vezes se defende contra o conhecimento destas atitudes, a transferência transforma-se geralmente em resistência, isto é, impede o progresso do tratamento. As transferências negativas, as atitudes expressivas de ódio, são reconhecidas como resistências logo desde o seu início; ao passo que a transferência de atitudes positivas de amor só se transformam em resistência por meio da sua mudança em transferência negativa como resultado do desapontamento ou do medo.” REICH, W. Análise do Caráter. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1979. p. 32-33.

[xxxi] HUGO, V. op. cit. p. 94-95.

[xxxii] ASSIS, M. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Chile: Editorial Cochrane, 1988. p. 7-8.

[xxxiii] GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 132-133.

1 CONTRACULTURA

 

Quem domina enquanto classe, necessariamente fixa “a aparência de que as ideias dominantes não são as ideias da classe dominante e têm um poder diferente do poder desta classe.”[i] A própria racionalidade pode ocultar uma motivação não necessariamente coerente consigo mesma, externa a si mesma, sobre-determinante do sistema em que a faz funcionar de forma lógica, de modo que

 

[...] os argumentos aparentemente racionais podem ser o mero reflexo de uma racionalidade heterônoma, imposta pelo todo social. Os participantes do processo comunicativo julgam estar agindo autonomamente e agem segundo as evidências do senso comum hegemônico, difundido pelos aparelhos culturais. A tese de que mesmo nas sociedades mais avançadas existem ainda brechas de racionalidade não sistêmica pode corresponder a um otimismo não justificado pelos fatos[ii].

 

Nesta agressiva economia das trocas simbólicas entram não apenas os meios internacionais de comunicação de massa (mass media), seus atacadistas nacionais e distribuidores regionais, os macro-aparelhos de produção simbólica dos Estados, nem apenas as igrejas, academias, agências, mas seus varejistas de esquina, o bilontra marqueteiro, o pastor suburbano, o poeta corre-chapéu. Toda geração tem orgulho de produzir seus fanqueiros e parasitas literários, e os exporta![iii]

 

O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência. Procurem os caracteres sérios abafar esse estado no estado que compromete a sua posição e o seu futuro.[iv]

 

Autoconsciências estacam ante os bookmakers e ghost writeres[v].

 

Há uma literatura que ninguém tem, que talvez nem tenha sido produzida, que se oferece ao estrangeiro, não em volumes, mas nas figuras de cidadãos bem educados, que falam com perfeição línguas difíceis e sabem frequentar embaixadas. Há outra, suada, ainda bem fraquinha, mas enfim uma coisa real, arranjada não se sabe como por indivíduos bastante ordinários. A primeira comparece a sessões solenes e manifesta-se em discurso; a segunda atrapalha-se e mete os pés pelas mãos na presença de gente de cerimônia e só desembucha no papel. A literatura honorária, escorada e oficial, vive sempre lá fora, chega aqui de passagem e quando aparece, é vista de longe, rolando em automóvel; a literatura efetiva, mal vestida e de segunda classe, mora no interior ou vegeta aqui, no subúrbio, e viaja a bonde, às vezes de pingente. Está errado tudo. Por que é que essas duas instituições, que não têm parentesco e usam o mesmo nome, não entram na combinação? Já que a primeira, constituída pelos patrões, é bem alimentada e não produz, e a segunda, a da gentinha, trabalha com a barriga colada ao espinhaço, podiam entender-se. A primeira daria um salário (ou ordenado, que é o nome decente) à segunda, e esta faria livros que, com alguns consertos na ortografia e na sintaxe poderiam ser assinados por ministro, conselheiro, desembargador e outros letrados deste gênero. [vi]

 

E mais:

 

O catálogo explícito e implícito, esotérico e exotérico do proibido e do tolerado não se limita a circunscrever um setor livre, mas o domina e controla de cima a baixo. Até os mínimos detalhes são modelados segundo sua receita. A indústria cultural, mediante suas proibições, fixa positivamente – [...] – uma linguagem sua, com uma sintaxe e um léxico próprios. A necessidade permanente de efeitos novos, que, todavia, permanecem ligados ao velho esquema, só faz acrescentar, como regra supletiva, a autoridade do que já foi transmitido, ao qual cada efeito particular desejaria esquivar-se. Tudo o que surge é submetido a um estigma tão profundo que, por fim, nada aparece que já não traga antecipadamente as marcas do jargão sabido, e, à primeira vista, não se demonstre aprovado e reconhecido. [...]. A indústria cultural por fim absolutiza a imitação. Reduzida a puro estilo, trai o seu segredo: a obediência à hierarquia social. A barbárie estética realiza hoje a ameaça que pesa sobre as criações espirituais desde o dia em que foram colecionadas e neutralizadas como cultura. Falar de cultura foi sempre contra a cultura.[vii]

 

O hic et nunc do verso estaria condenado à mudez cega, não fosse rebelde por natureza, oblíquo, indiscreto por vocação, oposto ao prosaísmo e dadá dos benifrates secretos das elites, estes quase-eunucos da própria voz, que Chico Buarque denunciou como a do dono. O verso é lascívia primal, invade os territórios privatizados da beleza e autoconsciência, age aos solavancos nos fios dos novelos dos impérios, ó carpas hodiernas.

 

2 INCONSCIENTE DESARMADO

 

Mas quantos estão a ponto de se ressentir de fatos relativos a to be, or not to be? Não é já sem número os integrados ao desarme de costumes, do gosto, da crítica? Um efeito colateral desta compostura é a impostura desesperada dos apocalípiticos a termos d’Umberto Eco:

 

Para o integrado, não existe o problema de essa cultura sair de baixo ou vir de cima para os consumidores indefesos. Mesmo porque, se os apocalípticos sobrevivem confeccionando teorias sobre a decadência, os integrados raramente teorizam e assim, mais facilmente, operam, produzem, emitem as suas mensagens cotidianamente a todos os níveis. [...] No fundo, o apocalíptico consola o leitor porque lhe permite entrever, sob o derrocar da catástrofe[viii], a existência de uma comunidade de 'super-homens', capazes de se elevarem, nem que seja apenas através da recusa, acima da banalidade média."[ix]

A poesia não é apocalíptica ou integrada, é uma arma.

 

Tratar-se-ia, portanto, de estabelecer de que maneira a estrutura das relações econômicas pode, ao determinar as condições e as posições dos sujeitos sociais, determinar a estrutura das relações simbólicas que se organizam nos termos de uma lógica irredutível à lógica das relações econômicas.[x]

 

Chega a tanto esta dissimulação que a poesia fica não só não-econômica, não-política, é esteticamente desligada das necessidades naturais de que nascera de início[xi], em uma espécie de transcendentalidade representacional existente por si mesma, afônica, desumana[xii], reificada no verbocentrismo cinza e abstrato.

 

A teoria da reificação (aqui fortemente recoberta com a análise da racionalização, de Max Weber) descreve o modo pelo qual, sob o capitalismo, as formas tradicionais mais antigas da atividade humana são instrumentalmente reorganizadas ou ‘taylorizadas’, analiticamente fragmentadas e reconstruídas, segundo vários modelos racionais de eficiência e essencialmente reestruturadas com base em uma diferenciação entre meios e fins. [...]. A força da aplicação dessa ideia a obras de arte pode ser medida em contraste com a definição da arte na filosofia estética tradicional (em particular em Kant) como uma ‘finalidade sem um fim’, isto é, uma atividade orientada a uma meta que, não obstante, carece de propósito ou fim prático no ‘mundo real’ dos negócios, da política, ou da práxis humana concreta em geral[xiii].

 

Porém, o que na primeiras camadas da infra-estrutura é a maquinização do corpo, nas últimas da superestrutura geram-se os “inconscientes maquínicos” apontados por Deleuze e Guatari, no encalço de W. Reich. Esta inversão gera um simulacro de arbítrio falseado. No limite, a poesia perde a consciência de suas bases materiais e se desconhece enquanto natureza, julgando-se autônoma do próprio contexto folclórico-cultural de que é parte e com o qual já não flerta e quase não dialoga, gerando um paradoxo filosófico, de quando “a razão perde os seus alicerces: não há bases reais para uma razão dialética.”[xiv] Excesso de instrumentalização do inconsciente vertido em estropiação de palavra até o verso inútil e consciente disto.

 

As belas letras, e as belas artes em geral, pendulam em quase toda parte até o ponto de absorver-se livremente em imaginações, sonhar ser "algo diferente da consciência da praxis existente, representar realmente algo sem representar algo real; desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo"[xv].

 

As representações que estes indivíduos elaboram são [inicialmente] representações a respeito de sua relação com a natureza, ou sobre as suas mútuas relações, ou a respeito de sua própria natureza. É evidente que, em todos estes casos, estas representações são a expressão consciente - real ou ilusória - de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção, de seu intercâmbio, de sua organização política e social. A suposição oposta é apenas possível quando se pressupõe fora do espírito de indivíduos reais, materialmente condicionados, um outro espírito à parte. Se a expressão consciente das relações reais destes indivíduos é ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isso é consequência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais limitadas que daí resultaram.[xvi]

 

Mas se a poesia é parte constitutiva do real, sua parte sígnica obviamente "pertence a este mundo e estabelece o seu complemento, embora seja apenas seu complemento ideal." [xvii] Não obstante, por autônomas, contraditórias, mutuamente excludentes, suas representações se fazem figurar apartando, isolando representador e representado, representações e homem, que já não se compreende, e já não as compreende: eis o sintoma.[xviii]



[i] MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 73. “As ideias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as ideias de sua dominação.” (Id., Ibid).

[ii] ROUANET, S. Razão Negativa e Razão Comunicativa. In. ROUANET, S. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 346.

[iii]A imprensa é a mesa do parasita literário; senta-se a ela com toda a sem-cerímônia; come e distribui pratos com o sangue frio mais alemão deste mundo — diante da paciência pública — que vacila sobre os seus eixos.” ASSIS, Machado. O Parasita Literário. In. ANDRADE, Ana Luiza. Transportes Pelo Olhar de Machado de Assis: Passagens entre o Livro e o Jornal. Chapecó: Grifos, 1999.

[iv] ASSIS, Machado de. Os Fanqueiros Literários. In. ANDRADE, Ana Luiza. Transportes Pelo Olhar de Machado de Assis: Passagens entre o Livro e o Jornal. Chapecó: Grifos, 1999.

[v]Então atinei que o hotel Zakariás de Budapeste hospedava o encontro anual de autores anônimos. [...]. Havia meia dúzia de intérpretes instalados com seus equipamentos na última fila, onde também me acomodei para não perturbar a sessão. [...]. Aí o público irrompeu numa ovação, seguida de fartas risadas depois que o Sr.... declinou o nome do suposto autor, Hidegkuti István, e relacionou os prêmios literários concedidos ao célebre contista. [...] [O Sr....] pegou a ler trechos de seus romances, ensaios, peças de dramaturgia, obras atribuídas a autores os mais heterogêneos, e que entre eles não houvesse um poeta me tranquilizou. Quase afônico, concluiu sua apresentação com um apanhado de generosas críticas daquelas mesmas obras, que publicara na imprensa com a assinatura do venerando professor Buzanszky Zoltán, levando a plateia a aclamá-lo de pé. [...]. Retesou-se, porém, assim que anunciei os Tercetos Secretos, poema de minha autoria outorgado ao emérito Kocsis Ferenc, com prefácio do venerando professor Buzanszky Zoltán. Eu tencionava ler, mas não li o prefácio, um autêntico Buzanszky, cujo estilo tão superior ao seu poderia humilhar o Sr.... — Preferi humilhá-lo com a poesia, arte que ele ignorava, e que o faria sofrer muito mais por não saber onde lhe doía. Eu declamava os versos lentamente, havia palavras que eu quase soletrava, pelo prazer de vê-lo se remexer na cadeira. Eu fazia longas pausas, silêncios que só um poeta se permite, e ele baixava o rosto, olhava para os lados, para seus montes de livros, chegou a juntar os livros no colo, fez menção de se retirar. Mas eu estava a cavaleiro, com meus tercetos na ponta da língua, eu estava declamando a Apoteose dos Poetas e sabia que ele quedaria sentado até o fim.” HOLANDA, Chico Buarque de. Budapeste. São Paulo: Shwarcz, 2003. p. 142-145.

[vi]  Cf. RAMOS, Graciliano. Linhas Tortas (Obra Póstuma). São Paulo: Livraria Martins Editora, sd.

[vii] HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Indústria Cultural: O Iluminismo como Mistificação de Massas. In. LIMA, L. (Org.). Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 176-179.

[viii] "A cultura de massa é a anticultura." ECO, U. Opus citatum. "Os centros burgueses de guerra psicológica tratam de elevar ao máximo a eficácia do uso dos meios de comunicação de massas. Há centros de investigação especializados no estudo dos processos informativos para revelar recursos ocultos que possibilitem incrementar a eficiência da informação. Em trabalhos do professor Michael Choukas (EUA), conotado especialista em guerra psicológica, se afirma que para obter êxito com as informações é imprescindível observar algumas condições: operatividade, máxima carga emocional, determinação exata do destinatário, combinação do efeito psicológico com a máxima atualidade da notícia. [...]. Especulam com o fato de que o indivíduo mediocremente informado pode perder-se no mar de notícias diárias. Tal indivíduo é incapaz de discernir a verdade da mentira, o importante do trivial, o tendencioso do franco." Cf. VOLKOGANOV, D. Guerra Psicológica. Moscou: Progresso, 1986. p. 133-134.

[ix] "O apocalíptico é uma obsessão do dissenter, a integração é a realidade concreta dos que não dissentem. [...]. Mas até que ponto não nos encontramos ante duas faces de um mesmo problema, e não representarão esses textos apocalípticos o mais sofisticado produto oferecido ao consumo de massa? Então a fórmula 'Apocalípticos e Integrados' não sugeriria a oposição entre duas atitudes (e os dois termos não teriam valor substantivo), mas a predicação de adjetivos complementares adaptáveis a esses mesmos produtores de uma 'crítica popular da cultura popular'. [...]. No limite, a comunidade reduzidíssima - e eleita - de quem escreve e de quem lê, 'nós dois, você e eu, os únicos que compreendem, e estão salvos: os únicos que não são massa'. Dissemos 'super-homens' pensando na origem nietzschiana (ou pseudonietzschiana) de muitas dessas atitudes. Mas dissemo-lo com malícia, pensando na malícia com que Gramsci insinuava que o modelo do super-homem nietzschiano poderia ser individuado nos heróis de folhetim oitocentista, no Conde de Monte Cristo, em Athos, em Rofolfo de Geroldstein ou (concessão generosa) em VautrIn. Se a comparação parecer peregrina, reflitamos sobre o fato de que sempre foi típico da cultura de massa o fazer cintilar aos olhos de seus leitores, dos quais exige uma disciplinada 'mediedade', a possibilidade de que ainda - dadas as condições existentes, e mesmo graças a elas - possa um dia florir da crisálida de cada um de nós um Uebermensch. O preço a pagar é que esse Uebermensch se ocupe de uma infinidade de pequenos problemas, mas mantenha a ordem fundamental das coisas: é o pequeno vício reformista do Rodolfo dos Mistérios de Paris, fato de que se deram conta não apenas Marx e Engels mas também - contemporaneamente a eles - Belinski e Poe, em duas apreciações que parecem estranhamente decalcadas sobre a polêmica da Sagrada Família. Num dos ensaios que se seguem, estudaremos um Super-homem típico da cultura de massa contemporânea, o Superman das estórias em quadrinhos: e parece-nos poder concluir que esse herói superdotado usa das suas vertiginosas possibilidades operativas para realizar um ideal de absoluta passividade, renunciando a todo projeto que não tenha sido previamente homologado pelos cadastros do bom senso oficial, tornando-se o exemplo de uma proba consciência ética desprovida de toda dimensão política: o Superman jamais estacionará seu carro em local proibido, e nunca fará uma revolução." Ibidem.

[x] BOURDIEU, P. Condição de Classe e Posição de Classe. In. BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 25. “Uma vez que as ideias dominantes tenham sido separadas dos indivíduos dominantes e, principalmente, das relações que nascem de uma dada fase do modo de produção, e que com isso chegue-se ao resultado de que na história as ideias sempre dominam, é muito fácil abstrair dessas ideias ‘a ideia’ etc. como o dominante na história e nesta medida conceber todos estes conceitos e ideias particulares como ‘autodeterminação’ do conceito que se desenvolve na história. É então também natural que todas as relações dos homens podem ser deduzidas do conceito de homem, do homem representado, da essência do homem, do homem. Assim procedeu a filosofia especulativa. O próprio Hegel confessa no final da Filosofia da História que ‘só considera o progresso do conceito’ e que expõe na história a ‘verdadeira teodicéia’.”. MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 74-77. Cf. HABERMAS, J. Mudanças Estruturais da Esfera Pública: Investigações Quanto a uma Categoria da Sociedade Burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

[xi] “A produção de ideias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens ativos e reais, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico.” MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 37. Embora a poesia seja essencialmente humana, “a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais.” Tese VI Sobre Feuerbach. Cf. MARX, K. Teses Sobre Feuerbach. In. MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 13. Cf. LABICA, G. As ‘Teses Sobre Feuerbach’ de Karl Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

[xii] Cf. ORTEGA Y GASSET, José. La deshumanización del arte. In. ORTEGA Y GASSET, José. Obras Completas. 2ª. ed. Tomo III. Madrid: Alianza Editorial, 1993.

[xiii]  Cf. JAMESON, Fredric. Reificação e utopia na cultura de massa. Disponível em: www.unicamp.br/cemarx/criticamar-xista/CM_1.2.pdf. Acesso: 1 jan. 2011.

[xiv] ROUANET, S. Razão Negativa e Razão Comunicativa. In. ROUANET, S. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 340.

[xv] MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 45. “Detenhamo-nos, sem embargo, por um momento na religião, por ser este o campo que mais afastado e mais desligado parece estar da vida material. A religião nasceu, em uma época primitiva, das ideias confusas, selváticas, que os homens formavam acerca de sua própria natureza e da natureza exterior que os rodeava. Porém toda ideologia, uma vez surgida, se desenvolve em conexão com o material de ideias dado, desenvolvendo-o e transformando-o por sua vez; de outro modo não seria uma ideologia, isto é, um trabalho sobre ideias concebidas como entidades com sua própria substantividade, com um desenvolvimento independente e submetida tão só a leis próprias. Estes homens ignoram forçosamente que as condições materiais, em cuja cabeça se desenvolve este processo ideológico, são as que determinam, em última instância, a marcha de tal processo, pois se não o ignorassem, se haveria acabado todo o caráter ideológico de seu pensamento.” Cf. MARX, K.; ENGELS, F.; Lênin, V. Antologia del Materialismo Histórico. México: Ediciones de Cultura Popular, 1979. p. 176.

[xvi] MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 36n.

[xvii] MARX, K. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In. MARX, K. Manuscritos Econômicos e Filosóficos: Texto Integral. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 52.

[xviii] “A representação territorial comporta essas três instâncias, o representante recalcado, a representação recalcante, o representante deslocado”. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, sd. p. 211.

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Última atualização em Seg, 02 de Setembro de 2019 02:24
 

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