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O Amor nos Tempos do Cólera. Por Mariana Pinto Miranda
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Dom, 31 de Maio de 2020 17:22
Mariana_Pinto__Miranda_Esta quarentena está me fazendo lembrar de tantas outras. Talvez você tenha já tenha vivido alguma. Momentos em que, de repente, seus planos foram adiados e você entrou num período cinzento de espera. Um problema, um emprego, uma doença, um ambiente social indesejado. Se uma situação já te aprisionou por muito tempo, você já viveu uma quarentena.

 

E acho que os sintomas de qualquer quarentena são sempre os mesmos.

Você tem a sensação de que sua vida está parada. Os dias parecem longos e iguais. Você perde muito tempo na internet, fica irritado por bobagem. Come o tempo todo. Dias e noites se misturam numa longa insônia – hoje é quarta ou quinta? Hoje é domingo. E, amanhã, também.

Geralmente, no início do isolamento, a gente faz questionamentos, fica teorizando sobre o problema. Depois, se sente apenas exausto e até evita falar no assunto. Começa montando um cronograma para superar aquela fase ruim - estudos, exercícios, meditação - mas tudo termina em frustração no sofá. Você arruma as gavetas, joga muita coisa fora. Encontra fotos antigas. Pensa em telefonar para pessoas que você não vê há anos. Você se arrepende das coisas que não fez quando ainda dava para fazer alguma coisa. As lembranças te dão um lugar para onde ir quando você precisa continuar aonde está.

Numa quarentena, você fica vendo a chuva pela janela do apartamento. A palavra apartamento significa apartado, separado, isolado. Sim, você se sente muito apartado. Há momentos em que você se pega tendo inveja de quem está bem, curtindo a vida. Em outros, você se sente culpado por todos os seus privilégios. Você reflete sobre a solidão e a vulnerabilidade no mundo. Você se sente sozinho e vulnerável.

Você pode sentir falta de ver gente. Ou sentir falta da pessoa que você se tornava quando estava em público. Como naquele conto de Machado de Assis, onde um militar é designado para vigiar um sítio vazio durante semanas. Mesmo estando completamente sozinho - poderia andar pelado, se quisesse - ele veste a farda todos os dias. Não gostava do que via no espelho quando estava sem ela. Se sentia perdido sem aquela farda.

Bem, acho que toda rotina social inclui muitas fardas. E uma quarentena repentina te despe de um jeito cruel - ela revela tudo aquilo o que você não é. Você não é o seu emprego, a sua vida social, o seu modo de vestir, de viajar. Você não é o seu talento para deixar uma boa impressão nas pessoas – especialmente quando não há ninguém para quem exibir essa figura fabulosa que você imagina ser. Só sobra, no espelho, um ser humano despido de tudo. Apenas isso. Você consegue gostar desse cara?

A pior quarentena é a que não tem data para acabar. Você fica à deriva pelas redes sociais, esperando algo acontecer – Esperando Godot, diria Beckett. Eu costumo comparar esses isolamentos a uma viagem marítima. Imagine que um deslocamento de 100 km por terra significa ver paisagens, pessoas, movimento. Já os mesmos 100 km num navio equivalem a um horizonte estático, sem início nem fim, onde você perde a noção dos dias. Você se sente confinado naquela imensidão, sem saber se falta um dia ou um ano para chegar a algum lugar.

E, já que falamos em oceano, me diga: quem você levaria contigo para uma ilha deserta? Essa era uma pergunta comum nos antigos questionários adolescentes. Era engraçado por quê todas respondiam a mesma coisa: o Leonardo DiCaprio. Hoje, imagino que o isolamento que a maioria de nós está vivendo não está acontecendo numa ilha deserta – lamento, gente – e tampouco nos deram chance de escolher com quem dividir essa ilha – desculpa, Léo – mas a pergunta é tão atual. Uma quarentena congela a nossa vida subitamente no hoje. Se você ficou confinado exatamente com quem você escolheria, você é uma pessoa de sorte. Isso inclui quem desejou estar apenas consigo mesmo. Mas, se sua ilha não é nada do que você sonhou, talvez algo precise mudar.

Essa história de navios e ilhas me fez lembrar de O Amor nos Tempos do Cólera, do García Márquez. No último capítulo, levantam a bandeira amarela: é anunciado que o navio entrará em quarentena. Que alegria. Finalmente eles poderiam navegar sem roteiro. Agora estavam sozinhos, longe de tudo, livres do mundo e tinham a chance de viver intensamente aquele momento. Era uma grande oportunidade. A quarentena é o final feliz.

Cientificamente, a palavra quarentena significa o prazo para algo se revelar: um sintoma, um diagnóstico. Sei de quarentenas que duraram dias, outras que duraram anos. Sei de gente que passou a vida aprisionado onde não queria estar e de gente que nunca percebeu que estava aprisionado. Isolamentos fazem a gente questionar se estamos vivendo a vida errada, na cidade errada, no planeta errado. Mas também nos aponta dádivas que, de outro jeito, a gente não perceberia.

Quarentena é revelação. E um navio bem grande, do tamanho do mundo, está em quarentena. É uma tragédia. E é, também, uma grande oportunidade.

Acalme o coração. Levante a sua bandeira amarela.

Quantas quarentenas você já viveu? O que esta quarentena quer revelar para você?

Mariana Pinto Miranda

Jornalista

Salvador, Bahia, Brasil

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