Lembre-se, você que acreditou com a Modernidade que a vida pública se havia definitivamente apartado do universo da feitiçaria, magia e fé (Entzauberung), que apesar disso o pensamento religioso é a forma simbólica padrão para muita gente. E que, quando a coisa aperta e polariza, grande parte das pessoas correm de volta ao pensamento religioso para entender todo o resto do mundo, inclusive a política. Do ponto de vista iluminista, é regressão, sim.

Assim, para tantas pessoas hoje, nas diferenças entre nós, não se trata de política, mas de religião. Eles não se veem como pessoas sustentando preferências particulares em uma sociedade pluralista, mas como servos da divindade tentando, com grande empenho e sacrifício, salvar a a alma dos ainda não convertidos à sua crença. Um alma evidentemente perdida na escuridão.

A verdade não lhes chegou por fatos e evidências, por isso os ignoram. Chegou-lhes por meio da Revelação. Assim, não podem reconhecer as posições divergentes como alternativas legítimas, como quer a democracia dos modernos, mas como o Erro causado ou pela ignorância da Verdade Revelada ou pela Maldade do Pecado.

Cabe, então, ao crente (quer dizer ao membro da seita política), a missão caridosa de reconduzir a tua alma pecaminosa à Luz. Por isso, pregar todo dia, no WhatsApp ou em redes sociais, é um ato religioso e santificado de ajudar na salvação das almas perdidas. Fazem-no por bondade, com grande sacrifício pessoal, apenas porque requerido pela fé. Ide e evangelizai, fazei todos meus discípulos.

E se as pessoas enchem o saco, xingam ou rompem os laços familiares por não aguentarem mais as tentativas infinitas de conversão, bem, é um preço a pagar. O crente tolera o pecador, mas não pode tolerar o pecado. É melhor cortar a mão pecaminosa (você) do que perder a alma ou o inteiro rebanho. Rá!

Post Scriptum: Não se enganem, que isso não vale só para o bolsonarismo, não. Tem muito crente lulista, ultraliberal e identitário dedicado dia e noite ao caridoso e sacrificado esforço de combater o Mal e esfregar a Verdade revelada na cara de agnósticos, descrentes e pessoas que vivem em pecado. O justo vive da sua fé.

Wilson Gomes é professor da Facom/UFBa