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A impunidade de Israel, a cumplicidade dos EUA e o sonho de Aisha. Por Lúcia Helena Issa
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Dom, 15 de Julho de 2018 08:18

Lucia_Helena_IssaTalvez todas as crianças do mundo, mesmo as que não eram refugiadas, vissem a mesma lua, aquela lua prateada, cuja luz entrava pela porta entreaberta, passava pela mesa de cedros e se derramava pelo chão de madeira, onde a menina costumava sentar para ouvir histórias.

 

Naquela noite de junho, quando se transformou em uma menina palestina refugiada, Aisha viu pela última vez a linda casa em que nasceu banhada pela luz da lua, antes que os soldados israelenses destruíssem tudo, atirassem e matassem seus pais.

Os tapetes, que para ela eram mágicos, a cozinha, o cheiro de falafel e babaganushi, a sala em que a mãe lhe ensinara a tecer e a bordar. Tudo foi destruído pelos soldados naquela noite. A mãe conseguira salvar Aisha porque dera a sua vida por ela. Os soldados a mataram, mas pouparam a vida da pequena.
As oliveiras da família, nos arredores de Jerusalém, que produziam o azeite que ela mais amava, foram destruídas, pisoteadas e queimadas pelos soldados israelenses.

O caminhão que levou Aisha, seus tios e primos até a fronteira do Líbano, para que não fossem mortos, era muito velho, fazia um barulho assustador e tinha as lonas de cobertura rasgadas e a carroceria lotada de refugiados que fugiam da morte.

Era o verão de 1967. A Guerra dos Seis Dias, desencadeada por Israel, chamada pelos israelenses de "guerra preventiva", alegando uma prevenção a um ataque do Egito, que jamais aconteceu, causou a devastação da família de Aisha e a morte de milhares de crianças palestinas a longo prazo.

Os israelenses invadiram e ocuparam ilegalmente a Cisjordânia, a Faixa de Gaza, a Península do Sinai, as Colinas Golã e a parte antiga de Jerusalém, onde viviam e vivem os palestinos há milhares de anos, anexando, de forma ilegal e altamente condenada pela ONU, e por mais de 80 países do mundo, a cidade de Jerusalém inteira e seus arredores, onde sempre viveram os ancestrais da menina palestina.

Os efeitos da Guerra que Israel afirma que durou seis dias, se multiplicam há mais de 40 e estão mais atuais do que nunca.

Aisha sobreviveu à dor de perder seus pais, a uma Guerra cruel e que permanece impune, aos bombardeios israelenses também ao Líbano em 1982, à pobreza extrema para uma menina que, antes da Guerra, tinha uma casa bonita e uma vida tranquila em sua terra natal, ao Massacre de Sabra e Chatila, e a todas as cicatrizes de crescer como refugiada.

Cinquenta anos depois, em seu pequena casa no campo de refugiados, numa noite de outono, ela me recebeu com imenso carinho, gratidão e esperança, ao lado de um quadro de tear palestino.

A menina refugiada, hoje mãe e avó, transformou se numa talentosa artista que, com suas mãos, mantém viva a história palestina através de seus bordados..
Ela não tece apenas tapetes e lindas túnicas palestinas bordadas. Tece a memória de um povo inteiro. Tece e borda a identidade de milhares palestinos refugiados. Resgata através de túnicas e tapetes, a história da Palestina, tece as cidades que foram destruídas por Israel desde 1948, tece mesquitas, tradições milenares, flores palestinas e símbolos da luta palestina por justiça e paz.

Aisha me revela que bordar as túnicas e vestidos palestinos e contar a história de seu povo através deles, a salvou da morte.

Escrever os nomes das cidades que foram destruídas, dar vida às cores palestinas e contar isso nas túnicas.

Os desenhos e bordados me fascinam, há vermelhos e verdes por toda parte. Amo o vermelho palestino e pergunto a ela por que não há também azul nas histórias contadas nas peças. Ela me explica que as primeiras tecelãs palestinas não usavam o azul. Mulheres como a avó de Aisha, não chegaram a usar o azul em seus tapetes porque as plantas do Mediterrâneo árabe, que elas usavam para tingir a lã de carneiro, não faziam o azul. A planta que fazia nascer o vermelho e a flor de tintureiro, que criava o amarelo e a camomila, que lhes dava o verde, não tinham o poder de criar o azul. Foi por isso que o azul não existia nos bordados palestinos por tantos séculos e foi por essa razão que o vermelho, uma das minhas cores prediletas, se tornou uma cor essencial para para a própria história palestina, resgatada por Aisha.

A memória coletiva de um povo, a injustiça imensa cometida contra milhares de palestinos expulsos de suas casas e terras, os vilarejos como Deir Yassin, onde centenas de palestinos foram mortos, tudo isso hoje vive através das mãos dessa linda senhora de olhos grandes e negros.

Aisha me pergunta em que cidades da Palestina eu estive recentemente e conto que estive em Ramallah, Jericó, Nablus, Hebron, Belém e Jerusalém. Quando digo Al Quds, a palavra Jerusalém em árabe, seus olhos se enchem de lágrimas.

Mesmo sendo palestina, mesmo tendo nascido na região de Jerusalém, tendo vivido ali até os 12 anos, tendo ancestrais que viveram de mais de 1000 anos em Jerusalém, Israel proíbe que Aisha e todos os outros refugiados palestinos voltem a Jerusalém. Proíbe que voltem ao lugar em que nasceram como determinam todas as leis internacionais.

Aisha me conta que encontrou no tear, na Jerusalém que renasce de suas mãos todos os dias, uma forma de resistir, de sobreviver, de sonhar e lutar para que o desejo de voltar a Jerusalém permaneça vivo nela e nas novas gerações.

Ela pede que eu espere um momento e caminha até o móvel onde guarda um pequeno tear , que ganhou da mãe quando criança, um conjunto de agulhas e o vestido palestino infantil, o único que a menina que naquele ano de 1967 viu s seus pais serem mortos, conseguiu trazer consigo na noite em que se tornou uma refugiada palestina.

Ao testemunhar a dor que aquelas lembranças lhe trazem, sinto uma vontade imensa de poder dizer que o mundo não irá mais permitir que Israel mate impunemente, que torture crianças palestinas com a cumplicidade dos EUA , que continuem sequestrando a Jerusalém de sua infância.

Sinto vontade de dizer tantas coisas e de dizer a ela que entraremos juntas em Jerusalém de alguma forma.

Ao invés disso, eu a abraço longamente, beijo seu rosto cansado e a agradeço por dividir comigo a sua história e seus sonhos.

Entro no carro que acaba de chegar, olho para trás e vejo a pequena casa diminuindo lentamente, enquanto um imenso temporal desaba sobre Beirute.

Lúcia Helena Issa éJornalista, escritora e ativista pela paz. Foi colaboradora da Folha de S.Paulo em Roma. Autora do livro "Quando amanhece na Sicília". Pós- graduada em Linguagem, Simbologia e Semiótica pela Universidade de Roma e embaixadora da Paz por uma organização internacional. Atualmente, vive entre o Rio de Janeiro e o Oriente Médio.

Artigo  publicado originalmente em https://www.brasil247.com/pt/colunistas/luciahelenaissa/361463/A-impunidade-de-Israel-a-cumplicidade-dos-EUA-e-o-sonho-de-Aisha.htm

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Última atualização em Ter, 17 de Julho de 2018 02:31
 

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