A importância de Gilberto Gil para a valorização do negro é reconhecida por muitos devido a sua atuação à frente do Ministério da Cultura, entre 2003 e 2008, nos governos de Lula.
Gil conduziu uma grande e vasta mudança na gestão cultural, incluindo iniciativas políticas e ações afirmativas para manifestações culturais de matriz africana, ou de raiz afro-brasileira, e, consequentemente, colaborou para o fortalecimento da consciência de negritude e da identidade étnica e racial. Tais medidas foram e são canais de viabilização de propostas e de lutas, das quais resultam alguns desacertos e muitas conquistas.
A meu ver, porém, o papel determinante de Gil no movimento negro vem desde muito antes. Creio que as novas gerações (também as mais velhas) talvez não tenham uma noção clara da situação social dos negros há 50 anos, lá pelos anos 70, muito pior do que hoje, seja quanto às limitações comportamentais impostas historicamente e por eles duramente assimiladas, seja quanto a uma naturalização da ideologia discriminatória, que impunha restrições de oportunidades de acesso à educação formal (notadamente níveis médio e superior), ao trabalho qualificado, à moradia, aos serviços corriqueiros do estado e da sociedade civil, aos equipamentos de cultura e lazer, num momento de explosão do crescimento urbano desordenado e de plenitude da ditadura militar.
Assim, a maioria de nós talvez não tenha noção da dimensão do impacto cultural provocado pelo disco "Refavela", lançado em 1977. Esse álbum foi como um catalisador, uma catapulta para que aflorasse uma consciência negra que, embora já emitisse sinais, ainda mal engatinhava naquela época. Pode soar exagerado afirmar, mas creio que a poética musical da obra, unida à postura e ao visual do artista à época (cabelo, vestuário, presença cênica, circulação social), contribuíram decisivamente para mudanças de atitudes e de valores, influenciando desde o ritmo do Carnaval da Bahia até a presença e o lugar do corpo negro na sociedade brasileira e na cultura nacional.
Uma identidade afro-brasileira, que vinha sendo pensada e gestada nas negras entranhas de uma Salvador de então e alhures, encontra em Gil seu porta-voz, reverberando nesse grito "Refavela" e repercutindo em becos, ladeiras e morros, para ganhar a cidade. O negro se viu nesse espelho e gostou do que viu. Uma reescrita se fez urgente na Roma Negra e no Brasil. Meninos, eu vi.
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