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Breve reflexão indignada sobre o Plano Estadual de Cultura por Ordep Serra
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Qua, 13 de Novembro de 2013 00:32

Ordep_Serra2Há pouco li o resumo das deliberações da reunião em que o Plano Estadual de Cultura foi aprovado pelo nosso Conselho. Não o desaprovo nem estou preocupado com ele. Não esperava mesmo que os meus argumentos fossem  reproduzidos, sequer em parte.

 

Sei que isso não seria possível em uma nota breve e despretensiosa.  Talvez também não fosse desejável, já que meu pronunciamento foi muito destoante com relação ao deliberado pela maioria. Mas quero esclarecer a minha posição, pois creio que a reflexão sobre o assunto deve continuar em nosso meio. Sei bem que a aprovação está consumada e o processo não vai ser revisto, mas temos a obrigação de fazer uma avaliação crítica do procedimento e de seu resultado.

Repito que o plano tem pouca consistência. A rigor, aprovamos algo que, na melhor das hipóteses, talvez possa tornar-se um plano, mas ainda está longe, muito longe, de merecer este nome.  O texto que apreciamos arrola um longo elenco de desideratos a que dá o nome de “estratégias”, desdobradas em “ações” do mesmo teor. Ora, quem fala em estratégias  deve explicitar um modus operandi, efetuar uma ponderação de meios e uma indicação de procedimentos  capazes de mobilizá-los (ou até de buscá-los, quando não são disponíveis de imediato). Caso contrário, estará usando o termo indevidamente. A propósito, em nosso debate evoquei a origem da palavra – e não foi sem propósito -:  triste estratego, candidato a derrota certa, será o infeliz que não reconhecer esse imperativo numa campanha. Por outro lado, continuo achando que há diferença entre “ações” e “diretrizes” .

Gente, isso não é só uma questão linguística: é questão de lógica e de seriedade, de senso prático e de  compromisso com resultados. Conceitos deturpados não levam longe, muito menos em matéria de  planejamento. Postos os objetivos, é preciso dizer como se pretende alcançá-los. Isso pressupõe uma avaliação de procedimentos, meios e recursos, cujo escalonamento se tem de fazer, sobretudo quando se pensa em um prazo de execução muito longo. Também importa definir prioridades, ordenando-as de modo a que se advirta sua congruência e suas correlações. Quem tem dezenas de prioridades não tem nenhuma, a menos que as hierarquize e/ou correlacione com toda a clareza, de modo econômico. Por certo, diferentes prioridades podem ser interligadas, entrelaçadas, fazer-se concomitantes, pelo menos até certo ponto. Mas o modo como se alcançará essa relativa sincronia e/ou a conexão das ações estimadas prioritárias no desenho de uma rede operacional precisa ser exposto, explicitado, fundamentado. Sem isso, torna-se impossível uma apreciação efetiva do “plano”. Para fazer face a essa exigência planejadores peritos têm o hábito de construir modelos, idealmente  enxutos, “elegantes” no sentido matemático do termo.

Admitamos que isso será feito, ou melhor, que tudo isso se planeja fazer. Tudo bem. Sendo assim, o que aprovamos foi, no máximo, a (ainda remota) possibilidade de um plano. Todavia estamos muito longe de torná-la viável, ou mesmo crível. Pois para além de ordenar ações previstas segundo uma lista de desejos, é preciso pensar na exequibilidade das propostas, das iniciativas que esses desideratos requerem, examinando as condições dadas para sua realização. Só assim os desejos  se tornarão autênticos objetivos, capazes de traduzir-se em metas passíveis de monitoramento e de controle social. E isso pressupõe a existência de um diagnóstico  tão completo quanto possível.

A verdade é que não o temos. O documento que nos foi entregue com esse título encerra informações úteis, dados valiosos, coligidos, por certo, com muito trabalho.  Mas é espantosamente omisso. Não culpo os técnicos que elaboraram a peça. As fontes de dados disponíveis são limitadas. Na realidade, o SNC (Sistema Nacional de Cultura) ainda é projeto, por mais que tenha avançado sua implantação. O correspondente estadual ainda engatinha. E tanto quanto sei, não houve levantamentos recentes que explorassem, aqui na Bahia, os campos visados no diagnóstico.  Vez por outra, o próprio texto denuncia as carências  de informação no tocante a vários tópicos.

Dadas todas as desculpas, a pobreza do resultado é inegável. Erigir sobre esta base um plano decenal de cultura me parece quixotesco, no sentido mais negativo do termo. As lacunas são evidentes. Em parte, pode-se entender porque elas não foram cobertas.  Mas há aspectos em que a omissão é menos justificável e me parece até mesmo escandalosa. Fala-se, por exemplo, de culturas indígenas e negras da Bahia sem mencionar, nem de longe, a tremenda violência que se abate contra nossos índios (que o digam os Tupinambás da Serra do Padeiro) e quilombolas (não esqueçamos Rio dos Macacos). Isso para não falar do terror em que vivem imersos, por exemplo, os jovens negros da periferia de nossa capital. A meu ver, esta situação tem repercussões gravíssimas no plano da cultura. Podemos ignorá-las? Precisamos, ou não, de estratégias para fazer face ao racismo que limita severamente nossa vida cultural? Parece que sequer conseguimos enxergá-lo na elaboração de um simples diagnóstico. No entanto, ao mesmo tempo celebramos a cultura cidadã. Dedicamos pios louvores à diversidade cultural, sempre glorificada; vamos tão longe que nos comprometemos a promovê-la não só na Bahia como no Brasil e no mundo;  repetimos com unção a preciosa jaculatória – e achamos que este rito bizarro nos absolve de nossa negligência. (A propósito, não conseguimos até hoje reunir-nos com o Conselho Estadual de Justiça e Direitos Humanos. Nem com qualquer outro. Falamos sempre de “transversalidade”, mas nos contentamos com a palavra).

Detecto no diagnóstico outra omissão perturbadora. Quem o lê à distância da Bahia, nem de longe faz ideia da tremenda crise hoje vivida na esfera da política cultural, em nosso Estado. Quanto a isso, o texto é silencioso, panglossiano e discretamente apologético. Mas a crise permanece grave, feroz, inegável. Há pouco recebemos a visita de artistas e produtores culturais desesperados com o agravamento da penúria que os acomete e que  ameaça crescer a ponto de calamidade por conta do brutal contingenciamento imposto às verbas da máquina administrativa do Estado. O Presidente do Conselho teve uma atuação digna de aplausos, empenhando-se em encontrar uma solução para o problema. Graças a iniciativas suas, do Secretário e de outros, mas principalmente dos próprios agentes culturais, encontraram-se, ao que parece, alguns paliativos. A tremenda injustiça que consistia em tratar igualmente os desiguais na imposição dos cortes às distintas Secretarias foi (espero) pelo menos atenuada. Mas eu me lembro muito bem das queixas dos dirigentes da SATED (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Diversões do Estado da Bahia) e de outras lideranças da classe artística, cujos pronunciamentos acusavam o caráter inveterado e sistemático de muitas das limitações que sofrem, da escassez de recursos para seus projetos, da insana burocracia envolvida, dos atrasos constantes (que na prática equivalem a calotes), das incertezas que esse bizantino circuito lhes acarreta. Apelando à velha fábula, pode-se dizer que o alívio experimentado pelos operadores de cultura com o recuo do governo na restrição exagerada dos últimos cortes incidentes sobre a área se parece muito com o “benefício” de tirar da casinhola da família pobre a vaca colocada lá justamente para isso. Pois bem: a crer no diagnóstico de que dispomos, não há contingenciamento nem penúria antiga, atrasos não acontecem, não se verificam entraves burocráticos nem labirintos kafkianos para o acesso aos recursos por parte de quem é contemplado nos editais, não há problemas com verbas e contratos: a nada disso se faz referência no texto em causa. Mas haverá um Conselheiro que ignore a situação de miséria crônica da pasta da Cultura? Pode-se levar a sério um diagnóstico que não fala deste assunto?

Como Presidente da Câmara de Patrimônio, tenho denunciado com frequência ao pleno do Conselho o estado de calamidade em que se encontra nosso acervo de bens de cultura e o severo desaparelhamento técnico do nosso Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural – IPAC. O órgão tem tido um desempenho sofrível. Chegou a passar dois anos ausente do ETELF, que desse modo quase inviabilizou. (Esse Escritório Técnico de Licenças e Fiscalização, em que colaboram  o referido órgão, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e agências da Prefeitura Municipal do Salvador desempenha papel importantíssimo: sua atuação vem a ser indispensável para o cuidado do acervo soteropolitano, de seus conjuntos monumentais). Não é exagero dizer que esse importante setor da política cultural, a quem incumbe o cuidado da memória,  apresenta falhas graves. Basta lembrar o fracasso do Escritório de Referência do Centro Antigo de Salvador. Foram devolvidos ao governo federal trinta e sete milhões que se poderiam destinar à recuperação da área simplesmente porque não havia projeto, não se foi capaz de elaborar um só projeto condizente. Agora se propõe criar um Fundo de Preservação a ser gerido não pelo IPAC, mas pela CONDER, a proteica Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia – um factotum administrativo, agência polichinelo tocadora de obras. Ou seja, entrega-se esse encargo atinente à cultura a um órgão de outra Secretaria, desviado de sua função original por conta do desinteresse dos nossos gestores pelo planejamento metropolitano – por seu descaso para com a Região Metropolitana de Salvador. A estranha decisão representa mais um ataque à Secretaria da Cultura, já mutilada com a passagem inaceitável do IRDEB (Instituto de Radiodifusão Educativa do Estado da Bahia) para os domínios da Secretaria de Comunicação – SECOM. Digo inaceitável porque considero a medida uma violência feita à educação, à cultura e à cidadania.  Aliás, este seria um ponto digno de discussão no Conselho.

Não podemos ignorar a crise escancarada, o estado lamentável a que se reduziu, entre outras, a área da cultura na Bahia, quadro recentemente agravado pelo descalabro financeiro do Estado.

É certo que aprovamos um plano ambicioso para todo um decênio. Quem quiser que o celebre. Não acho que essa arquitetura de sombras compense coisa alguma. Não vou juntar-me ao coro dos contentes. Receio que ao festejar a proeza façamos o triste papel de bailarinos da Ilha Fiscal.

Creio, sim, que precisamos de um plano de emergência para fazer face ao desastre d’agora. O próximo ano será, sem dúvida, muito complicado. Estaremos distraídos com  a Copa do Mundo (bela matriz de fraudes e desperdícios) e também com o circo da propaganda mais enganosa de todas a animar o mercado de votos.  Mas não há fábrica de ilusões que encubra para sempre uma ruína.

Não entendo porque a crise atual, profunda e manifesta, não entra em nossa agenda. Estamos ficando perigosamente parecidos com os infelizes que Dante visitou na primeira etapa de sua viagem: segundo o poeta, eles são capazes até de profetizar, porque enxergam o futuro remoto; mas nada percebem do presente (dos vivos). Nós deliramos fazendo projeções para dez anos, com a fantasia de um Candide, com a inspiração onisciente de Bouvard e Pécuchet; mas não enxergamos o que se passa agora. Porque preocupar-se, quando estamos maquinando o melhor dos mundos?

Deixem-me esclarecer uma coisa. Talvez eu não me tenha expressado bem no discurso que fiz em nossa última reunião; porém, tanto quanto recordo, não me declarei contrário por princípio a planos decenais. O que detesto são planos mal feitos.  Ótica de presbita não permite que se trace plano algum. Por isso mesmo, no inferno dantesco ninguém planeja nada (os danados são mais coerentes do que nós). Também me repugna a corrupção da linguagem, que Canetti e George Steiner denunciaram com tanta força. Não há muito que ensinei metodologia de ciências sociais (entre outras disciplinas) em três programas de pós-graduação, cobrando dos alunos o uso adequado de termos como projeto, plano, estratégia, diagnóstico etc. Talvez por isso eu me tenha tornado, digamos, um pouco intolerante com certas liberdades de expressão. Acho, também, que elas não são inócuas quando se trata de coisas que envolvem expectativas da sociedade e dispêndio de dinheiro público.

Sim, eu sei que planos de longo prazo são importantes. Nos movimentos sociais de que participo, tenho cobrado de nosso dirigentes que os implementem de modo adequado, para o ordenamento urbano democrático e inteligente de Salvador e de sua região metropolitana. Um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), por exemplo, quando é feito a sério, se elabora com uma visada mínima de cinquenta anos. Foram autoridades do pobre Município de Salvador e do Estado da Bahia que inventaram a tremenda asneira a que deram o nome de “PDDU da Copa”. Do jeito que prezam a cultura, a lógica e o planejamento, são capazes de propor  “PDDU de Carnaval” e até “PDDU de Aniversário de Boneca” – eu não me espantaria. Estou, porém, admirado com a curiosa qualidade de nossos gestores, que se revelam simultaneamente presbitas e míopes. Para esse tipo de gente, faltou ao florentino inventar mais um círculo.

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