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O poeta marginal, o intelectual e o marginal, propriamente dito. Por Lula Miranda
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Qui, 15 de Outubro de 2015 01:16

Lula_MirandaEstávamos eu, Duda Barbosa, grande intelectual dos "fodidos" e meu parceiro habitual de Mimosa [boteco já citado no capítulo “A Confraria dos Fracassados”], e mais uma galera – lembro-me que Cristal, um jovem músico, percussionista, estava nesse dia. Acho que Douglas De Almeida também.

 

Repetimos o mesmo ritual de sempre: depois de tomarmos as cervejas que o nosso parco dinheiro dava para pagar, fomos fumar um baseado.
O curioso é que, dessa vez, alguém, não lembro quem, nos convidou para fumar na casa de uma “amiga”, que ficava ali nas imediações – não custa lembrar, só para situar, era tarde da noite, no cu da madruga, e estávamos no centro histórico de Salvador.

Andamos uns cinquenta metros por aqueles calçamentos irregulares de paralelepípedos. Entramos, sem dificuldade, por uma porta de um dos velhos casarios, que dava para uma escada de madeira de incontáveis degraus – o prédio, se é que se poderia chamar aquilo de prédio, obviamente, não tinha elevador.

Ao chegarmos lá, a tal “amiga” atendeu a porta, muito gentilmente, e logo nos convidou a entrar para beber algo.

- Vocês têm “unzinho” aí, não tem? – ela logo perguntou, antes mesmo de dar “boa-noite”.

Olhe, se fosse um cara preconceituoso eu lhes diria que aquilo era um cortiço e que aquela mulher era uma puta. Mas...

Como eu não sou preconceituoso e já tinha, àquela altura do campeonato, lido toda a obra de Jorge Amado e, mais que isso, era um autêntico morador de Salvador, frequentador do Pelourinho-Maciel, nada daquilo me parecia estranho: putas, cortiços, adoráveis vagabundos, marginais, biriteiros, maconheiros etc.

Outra: meu primo Toinho, alguns anos antes, quando foi demitido do Pólo Petroquímico de Camaçari, passou uma época trabalhando como camelô e morando num autêntico cortiço ali perto, tão miserável, lenhado e “poético” quanto aquele.

O piso rangia a cada passo que dávamos. Lembrei-me, de cara, de “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, do velho Amado. Nada contra "O Cortiço" de Aluísio Azevedo, muito bom por sinal, mas a pegada aqui era outra.

Só achei um pouco demasiado, confesso, quando Cristal, que era Rastafari, na falta de uma seda, rasgou a página de uma Bíblia para apertar o baseado. Para mim, que havia recebido uma formação cristã, aquilo era um pouco demais.

Fumamos o baseado, não sei ao certo se embalado pelo velho ou pelo novo testamento, e em seguida "sartamos fora” para outra parada – dessa vez, só eu e Barbosa. Decidimos que iríamos tomar a “caideira” no Pelô.

No caminho, na calada daqueles becos ermos, numa daquelas esquinas onde todos os gatos são pardos, nos deparamos com um sujeito fumando um “morrão”. Barbosa não perdeu tempo:

- Dá pra dar um pau aí, pai?

- Ôxe! É só chegar, chegado! – respondeu o sujeito, todo solícito.

Puf, puf, puf. Passa a bola para cá, passa a bola para lá. Tudo aparentemente normal, até que o indivíduo olha para o meu pulso e diz:

- Relógio bacana esse seu aí – hein “prêiboy”?

- Porra, velho, acabamos de tomar de um Mané, logo ali – disse, com toda a convicção, presença de espírito e/ou capacidade de improviso do mundo, apontado para a outra esquina.

- Zorra, meu irmão, tô "na função" já faz uma “par” e até agora nada – explicou-me o indivíduo levantando a blusa e mostrando, na cintura, uma peixeira de palmo e meio que logo luziu, refletindo a luz rala do poste mais próximo.

- Nem me fale... - eu disse reticente. Se você quiser o "bôbo" [relógio, na linguagem da malandragem da época], eu faço jogo numa “paranga” [porção de maconha] de R$50,00. Tem aí? - blefei.

Nesse ínterim, um providencial e salvador farol de carro iluminou nossas sombras na parede em ruínas. Aproveitei a deixa da sorte e gritei.

- Sarta fora, Barbosa! São os “hômi”! Pintou sujeira, meu irmão!

E pernas para que te tenho. Saímos em desabalada carreira. Só fui reencontrar Barbosa meia hora depois no Mimosa - esbaforido, decerto, mas são e salvo.

Teríamos que tomar toda a cerveja do mundo de novo e fumar mais um, pois o susto nos havia deixado “de cara” novamente.

Foto de Lula Miranda.

OBS: Foto Ladeira do Mijo, Pelourinho-Maciel, 1979, de Miguel Rio Branco

[Capítulo do livro “Relatos e histórias de um Poeta Gauche – a (auto)biografia, precoce e NÃO AUTORIZADA, de um poeta fodido”]

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Última atualização em Qui, 15 de Outubro de 2015 01:23
 

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