Acordei decidida a só lembrar do golpe depois do meio dia. Abri a porta para o cara que tá reformando minha casa, o Zé. Era cedo, o café ainda cheirava.
Ele aceitou com uma ressalva ,"não gaste sua xícara comigo, não. Tem um copo descartável? ". Respondi que tinha, só que xícara é pra ser gasta. Ele retrucou, "essa pode quebrar". Sorri e lhe estendi a xícara. O lugar que lhe ofereci na mesa, ele sequer considerou. Entendi. Minutos de silêncio e as perguntas de praxe. - Voce trabalha há muito tempo com isso? "Desde os 14 anos". Disse o Zé já com cara de 40. A sua história era breve. O mesmo patrão que agora o tem como "faz tudo", o " pegou pra criar" quando ele tinha 14 anos. De lá pra cá ficaram muito amigos, disse ele. O patrão e " criador" se tornou empreiteiro, Zé se tornou em quem ele pode confiar " todo o dinheiro" do mundo, Zé trabalha sozinho porque dá conta de tudo, Zé cuida de todo serviço e é muito grato ao patrão e "criador" que, sendo tão trabalhador, acaba de comprar uma casa no Le Parc. Nem perguntei onde Zé mora. Zé negro, acanhado, sequer considera um lugar na mesa. O patrão, seu "amigo desde pequeno", branco, administrador, cheio de si. E foi assim que a merda deste golpe se abancou àquela altura da manhã. Ouvi tudo com o café amargo esfriando meu ânimo. " Não se gasta xícara comigo", era o que ele dizia a cada nova frase cheia de submissão e gratidão ao "criador" bem sucedido. O golpe é a estocada mais recente na velha ferida aberta pelo racismo e o paternalismo brasileiro que não nos dá trégua. Quantos Zés ainda vão dizer:"Não gaste sua xícara comigo?". Quando a bandeira da igualdade vai nos amanhecer? |