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Geração tombamento: O “lacre” como empoderamento estético entre jovens negras urbanas. Por Lorena Laceerda
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Qua, 03 de Agosto de 2016 11:52

Lorena_Lacerda“A noite tá perfeita eu saio ''cas'' amiga loca. Joias, maquiagem, muito capricho na roupa. Versatilizando no estilo com muito brilho “ Música Gandaia. Letra e intérprete: Karol Conka

A geração tombamento é um movimento estético urbano muito importante quanto ao fortalecimento e à autoestima de jovens negros urbanos no Brasil. O movimento ganha força nas redes sociais, nas periferias, nos espaços dentro e fora da militância, nas comunidades LGBT, nas festas (Batekoo/Don’t Touch in My Hair/Afrobapho & Tombo) e é representado por personalidades negras: Magá Moura, Carol Conka (“já que é pra tombar, tombei”), Liniker, As baianas e a Cozinha Mineira e Tássia Reis. A palavra tombamento se alinha ao termo empoderamento, e acredito que foi a partir dele o surgimento do significado de tombar: “fechar”, “lacrar”, “arrasar”, “divar”.

De acordo com a feminista negra Djamila Ribeiro no texto “O empoderamento necessário” para o portal Mulher Executiva, se empoderar parte de um conceito coletivo no sentido de proporcionar a si mesmo e aos outros mecanismos de enfrentamento para que juntos possam romper as estruturas racistas, sexistas, homofóbicas, ou seja, o combate de todas as formas de opressão para uma sociedade mais justa e igualitária no respeito às diferenças. Por conseguinte, se empoderar é identificar e compreender o que se é enquanto indivíduo e parte de um grupo desprovido de justiça social.

Editorial “DONA”. Fotografia: Bruno Gomes – 2016. Modelos: Maia Boitrago, Gabriela Silva, Suzanna Costa, Ingrid da Matta. Fonte: Afropunk.

O Brasil tem como base a escravização, aprisionamento e subalternização de corpos negros. Mesmo após a abolição formal, os negros continuam a sofrer com os resquícios escravocratas, quais sejam, más condições de moradia, saúde e educação. Segundo Neuza Santos SOUZA (1983) “o branco, a brancura, são únicos artífices e legítimos herdeiros do progresso e do desenvolvimento do homem. Eles são a cultura, a civilização [...]”. Em razão disto, o racismo é um sistema de opressão que humaniza brancos e desumaniza negros e, por este fator, os brancos possuem garantia legítima através das instituições, enquanto os negros reivindicam tratamento igualitário até os dias atuais.

Esteticamente também é notória a supremacia branca, sendo a mesma referenciada, posta como modelo nas capas de revistas, comerciais, desfiles de moda e editoriais. As características do negro sempre são colocadas como excludentes, em segundo plano, ou, quando mostradas, assumem um papel exótico, em desvio da normalidade. Desta forma, todos esses aspectos referentes à estética negra resultam de uma construção histórica baseada na escravidão e racismo. Segundo GOMES:

Durante séculos de escravidão, a perversidade do regime escravista materializou-se na forma como o corpo negro era visto e tratado. A diferença impressa nesse mesmo corpo pela cor da pele e pelos demais sinais diacríticos serviu como mais um argumento para justificar a colonização e encobrir intencionalidades econômicas e políticas. Foi a comparação dos sinais do corpo negro (como o nariz, a boca, a cor da pele e o tipo de cabelo) com os do branco europeu e colonizador que, naquele contexto, serviu de argumento para a formulação de um padrão de beleza e de fealdade que nos persegue até os dias atuais. (2002, p. 42)

Em vista disso, a estética negra e suas características (nariz, boca, cor, cabelo) são colocadas no lugar da feiura e os aspectos físicos da branquitude são estabelecidos como padrão de beleza a ser seguido por todos, inclusive aos negros. É perceptível essa imposição da estética branca como referência de beleza ao se estabelecer, por exemplo, que alisar os cabelos e tentar práticas de clareamento de pele devem ser intentados pelo negro para que se torne belo.

Assim, romper com a estrutura racista que permeia a nossa sociedade também se faz a partir do reconhecimento da beleza em outros tipos físicos que não apenas o branco. Ao reconhecer como belo os traços característicos do negro, há o empoderamento e resgate da autoestima da população negra. O papel da geração tombamento nessa retomada da autoconfiança e de força é fundamental na luta contra os estigmas recaídos sobre pessoas negras, afinal só é possível tombar quando se está com sua altivez elevada!

Renata Prado. Fotografia: Marcos Bacon. Foto: Deu Zebraa.

Diante da humilhação histórica e animalização da população negra, é visível a preocupação com a imagem, como podemos observar com o passar dos tempos. Os povos africanos foram forçados a saírem de seus locais de origem e, mesmo assim, conseguiram carregar consigo a sua cultura e costumes. Para garantir uma condição apresentável, diante de tanta opressão, os povos de origem africana e seus descendentes passaram a imprimir em suas vestes uma forma de serem reconhecidos como seres humanos. Conforme aponta Crane (2006, apud ALMEIDA, 2014, p. 2)

A aparência sempre foi uma questão importante para os descendentes de africanos na América. Os diferentes povos africanos, por mais peculiaridades que apresentam, possuem em sua essência, uma preocupação com o visual que atravessou o Atlântico e, com outras práticas culturais, acabaram adquirindo novos significados após o doloroso processo de colonização. É notável o quanto os adornos corporais, as joias e demais adereços são importantes na identificação de cada povo, em seu reconhecimento em relação ao outro e em relação com a própria comunidade.

Portanto, não é novo o interesse dos negros em se afirmar na aparência, capaz de se diferenciar e, sobretudo, de não aceitar o que lhe foi imposto enquanto desumanizados. Em função disso, existem vários grupos afrodiaspóricos pelo mundo que são exemplos de estilo, como os Sapeurs, no Congo – Brazzaville – que, mesmo com a pobreza de suas localidades, é tradição passada de pai para filhos, os seus sapatos brilhosos e seus ternos impecáveis. No documentário “Fresh Dressed”, do diretor Sacha Jenkins, que remonta a história do hip hop através da moda, o rapper e estilista norte-americano Pharrell Williams frisa o quanto a moda pode ser uma forma de expressão e singularidade.

Na música “Formation” da cantora pop Beyoncé, ela fala como o balanço do seu vestido da grife Givenchy é estiloso, ela diz em bom tom “We gon’ slay” (Nós vamos arrasar!). A rapper, naturalizada americana, Nicki Minaj em “Anaconda”, menciona o seu look Alexander McQueen e o desejo pela Balmain – famosas e luxuosas marcas, a primeira britânica e a segunda francesa. Por fim, é evidente entre negros, em qualquer escala social, a simpatia em ter estilo e fazer com que o visual seja a sua maneira de expressão e poder.

ESTÉTICA NEGRA, AUTOESTIMA E TOMBAMENTO ENTRE JOVENS NEGRAS URBANAS

Editorial “3 Types of Pink”. Fotografia: Éverton Carvalho - 2016. Modelo: Paloma Barbiezinha.

Sendo a sociedade racista e machista, as mulheres negras são desprivilegiadas por dois marcadores sociais: gênero e cor. No processo escravista as mesmas eram vistas como “boas de cama” e “fogosas” e, em decorrência desses estereótipos, foram coisificadas, mutiladas e estupradas pelos senhores de engenho. Nesse decurso histórico, as negras carregam o peso da inferiorização em relação as mulheres brancas. O cabelo liso, os traços finos e a pele clara são normas estético-sociais enquanto o cabelo crespo, lábios grossos, pele escura são repudiados socialmente. Diante de tais afirmações, é sintomático, ainda hoje, mulheres negras lutarem para o retorno dos cabelos naturais, uma vez que foram ensinadas que o cabelo crespo é sinônimo de sujeira e de negligência com a sua própria imagem. Ainda ressalta GOMES que:

O cabelo do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim” e do branco como “bom” expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode significar a tentativa do negro de sair do lugar da inferioridade ou a introjeção deste. Pode ainda representar um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas de usar o cabelo. (2012, p. 3)

Em função do empoderamento das mulheres negras, impulsionadas coletivamente pelo feminismo negro na luta pelo direito ao corpo e autonomia, é evidente os grandes avanços, principalmente entre jovens negras urbanas, no tocante à afirmação e ressignificação da sua estética. Para enfatizar, cito a intelectual e militante negra Sueli Carneiro (2004) quando ela diz que ”uma das características do racismo é a maneira pela qual ele aprisiona o outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racialmente hegemônicos o privilégio de serem representados em sua diversidade”. Porque ser mulher negra nunca foi sinônimo de fazer suas próprias escolhas e, muito menos, à pluralidade de serem representadas como diversas em sua negritude.

Érica Almeida. Ensaio: Liberte a deusa que tem em você. Fotografia: Amanda Vior

Para Lipovetsky (1989, apud ALMEIDA, 2014, p. 2) “[...] a moda é um dos espaços sociais em que os indivíduos conseguem exercer sua liberdade e sua maneira crítica de enxergar o mundo. [...] a moda é resultado do desejo de afirmação de uma personalidade que cada ser possui.” É crucial nesse contexto entender os modos nos quais as pessoas negras podem se manifestar através de vestimentas em busca do ser e estar no mundo numa configuração de liberdade e autonomia. Pintar os cabelos de cores diferenciadas sempre foi privilégio das mulheres brancas. As negras ficavam no máximo com os tons de preto para cobrir os cabelos brancos na velhice. Portanto, colorir os cabelos (Twists, box braids, dreads) de verde, azul, lilás, roxo, amarelo, cinza “pode ainda representar um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas de usar o cabelo.” enfatiza GOMES.

Para subverter o padrão branco de beleza, é preciso ensinar amor-próprio, desconstrução de todos os arquétipos inferiorizantes disseminados acerca da negritude e, posteriormente, lutar por representatividade em espaços de legitimação do belo: capas de revistas, novelas, filmes, seriados, agência de modelos e editoriais. A geração tombamento traz a juventude negra para esse protagonismo dentro do universo fashion, abusando das cores, seja nas roupas, cabelos, sapatos e na mistura de estampas. Outro elemento marcante é a influência da moda de rua dos anos 90 em cada peça/vestuário desse movimento(jeans/saia cintura alta, tênis adidas/nike, cropped, chinelo slide e muitos acessórios). Muitas roupas são garimpadas em brechós, feiras livres e igrejas, justamente por terem um design vintage e preço acessível, como é possível observar na iniciativa Original Favela – bazar itinerante criado por meninas (tombamento) de São Paulo.

Meninas do Brechó Itinerante “Original Favela – SP”.

A maquiagem também se insere nesse movimento como elemento diferenciador e, se destaca pelo uso dos batons de variadas cores, como verde, azul, laranja, roxo e preto servem para ressaltar, bem como afirmar os lábios tidos como desproporcionais ou “grandes demais” para uma feição aceitável as normas racistas.

 

Festa Batekoo. Foto: Deu Zebraa.

Dessa forma, deve-se reconhecer que a geração tombamento é um movimento relevante no reconhecimento e afirmação dos traços da mulher negra, pois a partir dele observa-se a crescente visibilidade das jovens negras, seja periférica, universitária, empreendedora, e ocupação por estas nos espaços que legitimam o status de beleza numa luta por representatividade. É notório verificar muitas delas influenciando outras milhares na internet, realizando ensaios, sendo blogueiras, vlogueiras e fashionistas. Para concluir, tombar virou tradução de possibilidades: o que antes era intocável para as mulheres negras que, em sua maioria lutavam – e ainda lutam – para retornar os cabelos naturais, hoje vem se transformando em escolha, em opção de ser o que quiserem, pintarem seus cabelos das mais variadas cores, terem mil tonalidades de batons conforme a suas vontades e conquistar, a cada passo, outros tantos sentidos de liberdade de “ser” e “querer ser” em afronta a imposição estético racista da indústria branca de beleza.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Deise Pinto de. A roupa como resistência: A construção da identidade negra através da moda. Disponível em <http://www.coloquiomoda.com.br/anais/anais/10-Coloquio-de-Moda_2014/COMUNICACAO-ORAL/CO-EIXO3-CULTURA/CO-EIXO-3-A-roupa-como-resistencia.congresso.pdf> Acessado em 23 de junho de 2016.

CANEIRO, Sueli. Negros de pele clara. Disponível em <http://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara/> Acessado em 23 de junho de 2016.

GOMES, NILMA LINO. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Disponível em <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/Corpo-e-cabelo-como-s%C3%ADmbolos-da-identidade-negra.pdf> Acessado em 23 de junho de 2016.

____.Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002, n.21, pp.40-51.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

FONTES

http://www.afropunk.com/profiles/blogs/interview-meet-the-young-afro-brazilian-women-behind-social-and> acesso em 25 de junho de 2016.

http://www.portalmulherexecutiva.com.br/o-empoderamento-necessario-19840> acessado em 25 de junho de 2016.

Artigo publicado originalmente em http://www.afronta.org/#!GERAÇÃO-TOMBAMENTO-O-“LACRE”-COMO-EMPODERAMENTO-ESTÉTICO-ENTRE-JOVENS-NEGRAS-URBANAS/c112t/579feeac0cf233f0ee8e9253

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Última atualização em Qua, 03 de Agosto de 2016 12:01
 

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