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De festa e evento não se faz um bom cimento. Por Gil Vicente Tavares
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Ter, 14 de Março de 2023 04:46

Gil-Vicente-TavaresHá duas semanas, fiz uma postagem em redes sociais intitulada A cidade das baleias. Foi a partir de uma notícia aqui mesmo, no Correio, onde o prefeito anunciava apresentações musicais no aniversário da cidade.

Coincidentemente, dias depois, foram anunciados mais eventos em torno dos 200 anos do 2 de julho, e, em meio a tudo isso, o presidente da Fundação Gregório de Mattos falando sobre a possibilidade de se potencializar ainda mais as efemérides da cidade, investimento em mais eventos concentrados nestas épocas do ano.

A postagem, nas redes sociais, teve uma razoável repercussão, e claro que, na carona, a histeria da província, bem poucamente, se doeu como se eu estivesse desqualificando completamente gestores e gestões. Mas penso sempre que se o exercício da crítica é abafado por partidarismos, coleguismos e oportunismos, criamos uma espécie de silêncio conivente com a aceitação do medíocre. E nada pior que o consenso tedioso do nosso mormaço à beira-mar, nos deixando grudentos e incomodados com um calor insolúvel; num tempo nublado onde nada parece inspirar a mudança.

Não tenho nada contra megaeventos. Mas penso que eles devem ser a culminância de uma cidade efervescente de arte e cultura, e não um alívio ao marasmo cotidiano onde a programação cultural da cidade é incipiente, inconstante e irregular. Então, penso que os gestores públicos deveriam primeiro estar atentos à produção da cidade, à arte cotidiana, fortalecê-la e estimulá-la, através de editais, programas, chamamentos, num diálogo com casas de espetáculos, centros culturais e teatros.

A questão aqui não é preferir um ou outro. Não é puxar brasa pra minha sardinha. Não é condenar e criar dissenso com ações que potencializem efemérides, nem tampouco com artistas que participem disso. A questão é mais objetiva e envolve economia, segurança, qualidade de vida, formação cidadã e transformação social.

Nos megaeventos, investe-se num pacote de ações prontas, que ganharão um alto valor, por um, dois, três dias. É um dinheiro que não vai circular na cidade. Por mais de uma vez, entrevistei algum (não lembro se foi o mesmo todas as vezes) presidente da Associação de Bares e Restaurantes da Bahia, e ele me revelou que em grandes eventos na rua, a arrecadação de bares e restaurantes cai. As pessoas ficam ali, em pé, por horas, mijando na rua, jogando latinhas no chão e consumindo comida rápida, e, cansados, vão para casa, ao fim. No Carnaval, então, a queda é mais violenta ainda.

Os cachês pagos aos técnicos e músicos, por melhores que sejam, não são suficientes para se guardar uma reserva mensal, trimestral. Um operador de luz ganha um cachê de operador de luz, para o megaevento, assim como o contra-regra, o cenotécnico, o chefe de palco. Melhor, mais robusto, que seja (e muitas vezes não é), mas um cachê padrão.

Em termos de sensibilização e democratização, não imagino que uma apresentação a céu aberto, em meio ao álcool, selfies, gritarias, empurra-empurra, encontros, apertos, vá fazer aquela plateia ter uma epifania e mudar sua vida, transformar sua sensibilidade, seja numa apresentação de Milton Nascimento ou Orkestra Rumpilezz. A festa vale pela festa, a farra, a confraternização e, também, a música. Tampouco penso que pessoas sairão de seus subúrbios e periferias, num precário sistema de transporte, para ter um alumbramento com alguma música que não faça parte de seu repertório, ali, na rua, na confusão, por uma noite apenas. A ideia de dar de graça para uma multidão algo menos popular - seja pelo histórico de valores de ingresso, seja pela sofisticação melódica e harmônica inusual aos ouvidos; muito porque não se dá acesso regular e democrático - não muda a pessoa pelo resto do ano, até porque no resto do ano as opções parecem sumir.

Quanto aos artistas contemplados, o espectro diminui sensivelmente. Quantas obras artísticas terão apelo de multidão? Girará sempre em torno de alguns, merecedores deste status, as contratações para megaeventos. E a maioria absoluta da produção local ficará sempre de fora.

Então, vamos lá.

Quando se investe numa produção artística mais cotidiana, em menor escala, investe-se em centenas de espetáculos que vão fazer girar uma cadeia produtiva em sua criação. De costureiras a marceneiros, de eletricistas a carretos, de lojas de tecido a lanches de mercado. Quanto mais produções acontecendo, mais gente sendo empregada, mais dinheiro circulando por serviços, material, equipamentos. São artistas e técnicos que durante os ensaios precisam comer, se locomover, comprar materiais de cena, e assim, numa produção de um, dois, três meses, podemos ver uma cidade mais movimentada e a economia girando, ao contrário de um evento concentrado de um dia, ou dois, três.

Ao estrear, e manter uma temporada, por mais tempo um técnico vai receber por seu trabalho. Se um operador de luz consegue um espetáculo quartas e quintas, e outro de sexta a domingo, ele estará ganhando para trabalhar cinco vezes por semana, durante algumas semanas ou meses. E quem ganha, gasta, faz o capital circular. Matemática simples. Assim, eu poderia discorrer sobre todos da cadeia produtiva, e veríamos o quanto produções sendo ensaiadas e depois em cartaz fazem a economia girar e aquecer o mercado. 
Naturalmente, quando se vai ao teatro, a uma apresentação musical ou de dança, as pessoas costumam depois sair pra jantar ou ir a um bar, comentar sobre o que viu, confraternizar. Aquele espetáculo que o técnico trabalhou quarta e quinta, mais aquele outro de sexta a domingo, fez ter gente na rua, consumindo, andando pela cidade, por cinco dias da semana. Circular pela cidade é consumir na cidade, é movimentar a cidade, é mais gente pela rua gerando menos chance de violência e assalto, é mais chance de encontros, caminhadas, descobertas de espaços novos, trocas de experiências. E um espetáculo mais tempo em cartaz gera um maior boca-a-boca. E mais gente querendo ver, quanto mais agradar. 
Cacilda Becker dizia: “Não me peça para dar de graça a única coisa que tenho para vender”. É importante que tenhamos espetáculos cobrando. Até para que a bilheteria possa retroalimentar o espetáculo e fazer multiplicar apresentações e investimentos no espetáculo que fujam da dependência do erário. Porque, sim, o Estado tem o papel fundamental de apoiar financeiramente as artes, mas não pode sustentar totalmente sua produção. Faz-se necessário certa independência e certa sustentabilidade, também; sob risco de comodismo, e de projetos que não pensem em carreira, em público, em um retorno para a sociedade e para a própria continuidade da obra.
Um sujeito, ao sair de uma peça, consome facilmente três cervejas, o que dá o preço de uma inteira, em média, para uma peça. As pessoas não economizam no petisco, no uber, na cerveja, mas querem convite, querem de graça. Acho errado. E a bilheteria é mais um fator a fazer movimentar a cadeia produtiva. E quem ganha dessa bilheteria, não volta pra seu camarim para comer comida que a gestão pública deixou lá, nem volta num transporte para um hotel, e depois viaja pra sua casa, tudo pago com dinheiro público. Essa pessoa gasta na cidade. Mais uma vez, como eu disse, faz a economia girar.

Pode-se falar em turismo. Ninguém vai a Buenos Aires, Paris ou Nova Iorque em busca de alguma efeméride. Vai por causa da cidade. E esperando programação cultural quando chegar. A ideia de concentrar a circulação de turistas em datas específicas, consumindo apenas o que gira em torno do evento, é outro erro, me parece. Salvador tem que ser atrativa o ano todo, e ter uma programação pulsante a qualquer instante que alguém chegar aqui. Um amálgama de diversidade e criatividade, cimentando arte ao tecido urbano. É o turista do dia-a-dia, não o do evento, que alimenta a cidade e é alimentado por ela, fazendo a imagem daqui circular para além da festa, algazarra e euforia efêmera.

Extrapolei os caracteres, muito mais poderia falar, mas esperar 15 dias pra continuar ia esfriar o assunto. E não queria voltar a ele. Há décadas critico essa política da festa, e nada parece mudar nesta cidade fadada a ser um balneário de eventos e arte efêmera e sem continuidade.

E, se possível, sem crítica. Porque remexer no marasmo e mormaço da província não agrada à turba quieta

Gil Vicente é Diretor Teatral e Professor da Escola de Teatro da UFBa

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