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A pontualidade dos baianos por João Carlos Salles
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Comportamento
Sex, 29 de Janeiro de 2010 21:07
O baiano é pontual. Nosso problema, às vezes, são as circunstâncias, nossos diversos arranjos celestiais, que favorecem negociações surpreendentes com o tempo e com os outros. Resolvi, por exemplo, escrever sobre o tema e logo, dadas as tais circunstâncias, adiei esta coluna por uma semana, como se estivesse a defender alguma tese estranha ou difícil. Ora, tese difícil seria enunciar que, sob alguma perspectiva, os baianos prezam o silêncio. Não é o caso. Agora, escrevo na marra e apressadamente sobre esse tema fácil e um tanto óbvio, apenas para que o adiamento não vire atraso. O adiamento é consentido; já o atraso é um inferno, e sempre gera culpa. Aliás, uma culpa tão imensa que mal a suportaríamos, se não tornássemos a medida do tempo menos presa à dimensão limitada dos relógios.

Independente de ser ou não baiano, atraso ou pontualidade têm medidas relativas. Em toda parte, medem-se pelo poder, de sorte que têm direito a grande atraso médicos, patrões e noivas, embora não pelas mesmas razões. Por outro lado, as regras baianas são muito estritas, e sabemos bem quando alguém de fato está atrasado. Ocorre apenas ser isso muito variável e quase insondável para estrangeiros.

Em outras palavras, em sendo estritas, as regras nada têm de estreitas.
Assim, no Teatro Castro Alves, só recentemente 21:00 horas passaram a ser 21:oo horas, enquanto em São Lázaro, onde se encontra a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, uma palestra marcada para as 10:00 horas deva começar apenas após as 10:15 horas, sob pena de antes não termos público.

A depender da casa, podemos chegar pontualmente até duas ou mais horas após o combinado para um jantar; em outras, apenas uns poucos minutos; embora em nenhuma, é claro, antes da hora. Mas os baianos que vão preparar o jantar, os que estarão nas cozinhas, não têm direito a qualquer variação e serão pontuais segundo outros critérios. Por isso, devem ter chegado muito cedo, muitos deles após longas caminhadas, bem calculadas no tempo e no ritmo do "modo de deslocamento a pé".

O atraso nos pesa a todos como uma nuvem de tempestade. Em regra, portanto, não costumamos atrasar, pois procuramos obsessivamente chegar em ponto no momento exato em que julgamos ser esperados, como em nosso compromisso com a morte e com a história. E baiano que se preze pode até driblar a morte, mas não deixaria a história esperando, sendo 'história' aqui um conceito bem mais rico e colorido que o de 'tempo'. Pontualidade é, então, uma das artes do consenso, revelando a rara sensibilidade do baiano para o transcendental e (muito servilmente, por vezes) para o ritmo do poder.

Quando atrasamos (eis o perigo, eis de onde talvez surja a má fama), fazemos um grande estardalhaço e, simplesmente, nos desculpamos em demasia. Assim como somos muito insistentes quando queremos agradar, fazemos excessiva propaganda de uns poucos minutos de atraso, enquanto outras tribos costumam atrasar em silêncio. Disso resulta que, por cálculos aproximados, cinco minutos de baiano talvez causem dano psicológico semelhante a trinta minutos de paulista.

Conta Bob Fernandes, tendo isso documentado, que os relógios da Rodoviária de Salvador eram pontualmente "atrasados" em 15 minutos. Como a história não pára, em tempo globalizado, resistimos agora bravamente com um atraso oficial de cinco minutos. Moral da história: não se pode acelerar a cultura, que vive um tempo próprio e coletivo, mas se pode, pontualmente, atrasar o relógio. Por sinal, imaginem a paz que hoje não teríamos em nossos aeroportos se, com alguma sabedoria, seus relógios tivessem um atraso oficial, digamos, de umas três ou quatro horas.

A pontualidade, assim sem mais nem menos, é fria. E, a pouco e pouco, toda cultura será tragada por ela, só lhe resistindo, quem sabe, em momentos de festa. Por enquanto, porém, caso alguma dimensão cultural esteja envolvida, o complicado jogo com o tempo será vivido por cada um à sua maneira. Com efeito, todo cosmopolita se parece e nada precisa justificar, mas somos provincianos de um modo só nosso, e com o tempo, especialmente, toda vez que o sobrecarregamos de significados e considerandos.

Por dever de ofício e por baianidade congênita, só posso elogiar a forma singular de os baianos viverem sua pontualidade. Devo confessar, porém, que, pessoalmente, ela me é insuportável. Um terror, uma frustração diária.
Afinal, tirante esta coluna, sou dos tais que costumam chegar adiantado, a ponto de incomodar a quem porventura me convide para jantar, pois certamente, na maioria das vezes, chegarei quando a dona da casa ainda estiver se arrumando. Paciência.

Pior ainda, sou dos tais que também sofrem com o atraso alheio, pois então, talvez por excessiva auto-estima, não consigo deixar de sentir-me desrespeitado. Entendo, porém, muito depois, quando passou o sofrimento, que essa intransigência é uma forma minha de lidar com o tempo - uma forma pessoal e intransferível, para a qual tenho muitas explicações, das quais declinarei apenas uma, registrando a cor local de meu provincianismo.

Provavelmente, a história é falsa, embora tenha se entranhado em minha imaginação, juntamente com outras lendas, como a do cortejo de almas que (como aprendi na infância em Cachoeira) nos arriscamos todos a acompanhar, caso cheguemos a nossa casa fora de hora.

Reza a lenda que um jovem militante da Ação Popular, um que foi destacado líder estudantil e veio a tornar-se deputado, estava sendo cortejado pelo MR-8, que com ele marcou um encontro lá pelos idos do final dos anos setenta, ainda com uma aura de clandestinidade. Vamos proteger a identidade desse jovem líder, batizando-o com um codinome qualquer - por exemplo, Marcelo.

Pois bem, esse tal Marcelo chegou cinco minutos atrasado ao encontro com o capa preta, que lhe passou um sermão terrível, mostrando, entre outras coisas, como ele teria colocado em risco a revolução no Brasil. Um atraso qualquer sempre ameaçaria a organização inteira, colocando em risco de vida o mais distante camarada.

Marcelo, diz a lenda, caiu em prantos. Num átimo, sentiu ter finalmente encontrado o único e verdadeiro partido revolucionário e se converteu ao MR-8, passando a ter doravante destacado papel nas vias misteriosas dessa organização. Suspeito que, nesse momento mágico, por culpa de um atraso, Marcelo encontrou boas e definitivas razões para todo seu caminho futuro, inclusive para as conhecidas alianças históricas com o Orestes Quércia.

Realmente, há muitas razões para temer um atraso qualquer. E creio ser pontual, extremamente pontual, um aficionado da medida inóspita dos relógios, sobretudo em virtude de muitas pequenas histórias, de muitos pequenos medos. Sou pontual por causa de meus fantasmas, mesmo quando acaso invoco regras triviais de boa educação e cortesia. Mas, entre todas as razões minhas para ser pontual, destaca-se com certeza a de que, quando penso, ainda me pélo de medo de virar quercista.

João Carlos Salles é professor do Departamento de Filosofia da UFBA e publicou os livros A Gramática das Cores em Wittgenstein e O Retrato do Vermelho e outros ensaios.

Terra Magazine

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