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Uma banana é uma banana por José Miguel Wisnik
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Comportamento
Dom, 11 de Maio de 2014 22:52

Jose_Miguel_WisnikQuem esperaria semelhante redução ontológica de um lateral-direito em ação? Daniel Alves despontou recentemente como um herói antirracista ao comer uma banana atirada contra ele quando ia bater um escanteio no jogo do Barcelona contra o Villareal.

Digo herói sem esquecer as conotações mais paródicas do que épicas do ato, nem o fato de que o lateral-direito da seleção brasileira foi também acusado por militantes dos movimentos negros de ter embananado a discussão racial e trazido perigosamente o macaco para o campo dos símbolos antirracistas. Eu sou dos que gostaram da forma e do conteúdo do acontecimento em si. Atirar bananas em campo, na direção de jogadores negros e mestiços, ou imitar macacos passou a ser uma prática recorrente, mesmo que pontual, na Europa e em países da América do Sul, incluindo o Brasil. Para quem viu a cena, chama a atenção que Daniel o fez de maneira espontânea, como que casual, sem inflar de importância o próprio gesto e sem retardar a cobrança do escanteio, como quem sinalizasse que tem mais o que fazer.

Esse despojamento era importante para a natureza do que estava em questão. O jogador possivelmente já vinha matutando sobre como proceder numa eventual situação dessas. Talvez por isso, ou por um raio de intuição momentânea, não tenha precisado pensar nem ostentar a decisão. Prontamente ele aceita, não o insulto, mas o objeto do insulto, reduzindo-o à sua expressão mais simples e invertendo-lhe o sinal. Uma banana é uma banana — antes de mais nada isso. Quem esperaria semelhante redução ontológica de um lateral-direito em ação?

A verdade é que a banana atirada ao gramado vem inflada de conotações agregadas, de ilações e pressupostos. Ela quer ser lida como um discurso que ganhasse a concretude das coisas, passando por natural: “você não se inclui no campo das pessoas, mas na ordem sub-humana dos animais e dos escravos, a cuja condição deve voltar”. Esses preconceitos em penca, atingindo pessoas e animais, livres e escravos, querem desequilibrar o adversário caindo sobre ele como uma sombra rebaixante.

É muito comum, na discussão ideológica, a tentativa de se contrapor ao antagonista aceitando-lhe, sem perceber, a lógica, a mitologia latente e a maneira como ele pretende fazer passar por necessária, no caso, a cadeia banana-macaco-bicho-negro-escravo. O gesto de Daniel Alves desmonta essa cadeia e a pretensa naturalidade de que ela quer se investir. Tomando a banana como uma banana, e, insisto, sem carregar na teatralidade do ato, desmancha a suposta necessidade dos demais elos, e desencanta o tabu que quer se impor sobre o suposto pária. Muitas vezes a reação indignada e horrorizada com que se responde ao absurdo racista inscreve-se ainda no campo do tabu, submetendo-se de maneira reverente demais à intimidação que o racismo quer impor. O herói astucioso, desde tempos homéricos, exibe os artifícios do monstro como artifícios, e desmoraliza seus truques, e traques, naquilo que são.

Eu não estaria falando nada disso se Daniel Alves não tivesse recusado qualquer uso publicitário do acontecimento, o que seria o passo seguinte e praticamente obrigado, quando não planejado, da cadeia mercadológica. Achei notável, pela abertura à complexidade e à sutileza, o comentário que ele faz sobre o atirador de bananas, notando que talvez, na vida real, este não seja o racista ostensivo que se exibe no campo de futebol. E me identifiquei em parte com a sua declaração de que o lema “somos todos macacos”, extraído do seu gesto, é uma extrapolação apressada que confunde a questão de que somos humanos e iguais.

Em suma, Daniel Alves é um gente boa do interior da Bahia, atuando há doze anos no futebol espanhol, que deu mostras de inteligência e integridade no episódio que ganhou repercussão mundial. A estratégia que ele pôs em ato, com prontidão e naturalidade, participa daquilo que já foi reconhecido como traço cultural brasileiro. A ideia oswaldiana da transformação do tabu em totem se aplica perfeitamente aqui: ali onde há um interdito cercado de preconceito, superstição e temor, trata-se de revertê-lo e de desencantá-lo, com armas que não deixam de ser lúdicas e paródicas. Oswald de Andrade concebia essa via como um caminho para o mundo, não só para o Brasil. O que supõe que as palavras e os atos não sejam imobilizados em sentidos fixos e persecutórios, nos mais diferentes discursos, mas capazes de ganhar sentidos novos quando deslocados pelos usos, revertendo ideias prontas — como “banana” e “macaco” (o que Lima Barreto fez, aliás, de maneira surpreendente, em 1920).

Faz bem essa chispa de um modo de ser antropofágico no país mergulhado na “baixa antropofagia” (a expressão também é de Oswald), que ensaia linchamentos movidos pelos simulacros da internet, e onde não se puniram os racistas que insultaram Tinga e o juiz gaúcho, ao contrário do Villareal, que identificou e afastou para sempre de seu estádio o citado atirador de bananas.

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