Se tivesse ‘padrão Fifa’, o Brasil seria muito pior por Mário Magalhães |
Dando o que Falar | |||
Ter, 27 de Maio de 2014 09:00 | |||
A palavra de ordem se disseminou com intenção generosa: o Brasil padrão Fifa seria melhor. No Google, aparecem 460 mil registros quando se digita “padrão Fifa'' entre aspas. Os serviços públicos, a começar por educação e saúde, teriam mais qualidade, se mimetizassem o alto nível da dona do futebol _é a ladainha que ouvimos desde junho de 2013. Com o perdão dos que adotaram a divisa, eu acho que o padrão Fifa é uma balela ou significa o avesso do lugar-comum que se fixou no imaginário nacional. O país seria muitíssimo pior caso se espelhasse nos valores, métodos e obra de Sepp Blatter e seus bons companheiros. Na saúde, o padrão Fifa seria o contrário de cuidar da vida dos brasileiros, o que se faz (ou deveria ser feito) com bons hospitais e pronto-socorros, profissionais qualificados e bem remunerados, prevenção acurada, saneamento para todos, alimentação decente e outras providências. Seria o contrário porque a Fifa secundariza a saúde dos jogadores de futebol e prioriza o caixa. Na Copa de 94, a entidade, ainda conduzida por João Havelange, impôs jogos ao meio-dia no escaldante verão californiano. Já na gestão de Joseph Blatter, entregou de modo suspeito o Mundial de 2022 ao Catar, onde o calor torturante ataca na época do ano que a tradição reserva ao torneio. Isso é se preocupar com a saúde?
A educação inspirada no padrão Fifa não seria dos sonhos, e sim o oposto. Ao abordar o racismo, em vez de ensinar a repulsa, os professores pregariam tolerância com a segregação. Por todo o planeta, acumulam-se episódios de preconceito. Em vez de punir as agremiações que acolhem torcedores racistas, a Fifa somente obriga seleções a entrarem em campo com faixas cujos dizeres, embora justos, estão longe de proporcionar o efeito de castigos exemplares. E as lições de democracia? O que há de se aprender com a política elitista de preços escorchantes dos ingressos? Mesmo dentro das ditas arenas, camarotes chiquérrimos documentam e celebram a desigualdade obscena. Uma federação que interdita a alternância de governo e eterniza seus capi sugere democracia? Por mais de 20 anos, Havelange não largou o osso. Seu sucessor mantém idêntico apetite. De acordo com o padrão Fifa, ditaduras não são ruins e ditadores são todos boa gente, desde que se prestem aos propósitos dos poderosos chefões encastelados na Suíça. Já havia sido assim na Copa de 78, na Argentina do genocida Videla, e continua hoje, quando os tiranos mais sinistros são bem-vindos na entidade. O que a Fifa diria sobre controle rigoroso de negócios em geral e operações financeiras em particular? Dificilmente apresentaria como case o esquema que resultou na escolha do Catar. Muito menos o que permite que amigos da cartolagem lucrem com ingressos da Copa, fazendo decolar a preços ainda mais exorbitantes pacotes que já são para poucos. É essa a gestão que queremos como padrão? O padrão Fifa subverte o ensinamento franciscano do “é dando que se recebe'', a considerar tantas denúncias de propinas. O que o padrão Fifa propõe para quem é flagrado em impedimento, senão a impunidade? Que punição houve para Havelange e Ricardo Teixeira? É essa a Justiça ideal, o padrão Fifa de combate à corrupção? Em que o Brasil prosperaria se imitasse o comportamento do secretário-geral Jérôme Valcke? Ele é o mesmo executivo que embolsou, na condição de lobista, dinheiro da candidatura brasileira ao Mundial e mais tarde, na pele de cartola, sugeriu um pontapé no nosso traseiro. Do seu papel no lobby só se soube graças a furo do repórter Sérgio Rangel. Almejamos a transparência padrão Fifa, que escondia o frila do francês? Em matéria de inovação e evolução, será que o caminho é o da Fifa, que resiste até ao controle eletrônico para saber se a bola entrou no gol? De todas as expressões do farisaísmo do padrão Fifa, duas se destacam. A primeira, quando a entidade fala em legado disso e daquilo para o Brasil. Ela está interessada em multiplicar sua fortuna. E só. E quando alardeia sua devoção pelo futebol. A Fifa mercantilizou a níveis jamais vistos a mais genuína paixão dos brasileiros. Apropriou-se até de nomes consagrados, como “Copa do Mundo''. Por sorte, pelo menos isso não conseguiram nos roubar, a paixão que constitui a essência do futebol. A despeito de todas as mazelas que vigoram no país que figura entre os campeões da desigualdade, o Brasil no padrão Fifa seria ainda mais egoísta, hipócrita, inescrupuloso, obscuro e desigual. Padrão Fifa é exigir do outro o que não se faz _faça o que eu digo, e não o que eu faço. A Fifa já nos fez muito mal. Fará mais ainda se o seu famigerado padrão se tornar o nosso modelo. Publicado originalmente em http://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2014/05/27/se-tivesse-padrao-fifa-o-brasil-seria-muito-pior/
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